26 de novembro de 2018

A geologia e o vinho: legados

Por Marco Gonzalez

Normalmente as cartas de vinhos, em bons restaurantes, são organizadas por tipo de uva, estilo de vinho ou país de origem, mas já é possível encontrá-las classificadas pela geologia dos vinhedos. Parece compreensível, pois não há vinha sem solo, nem solo sem rocha, e é a partir daí que os vinhos constroem aromas e sabores. Ou não?

Vinhedos em uma aldeia da região vinícola de Champagne, na França (foto: Phillip Capper)

Seria possível detectar nos vinhos a influência da mineralogia, da geotectônica, enfim, da geologia? Há exemplos que apontam neste sentido:
  • sem a mineralogia dos xistos silurianos roxos e verdes, com quartzo, provavelmente não existiria o solo requerido para o chenin blanc de Savennières, na França; e 
  • sem processos geotectônicos, talvez faltasse champanhe para brindar. A região onde este espumante é cultivado poderia ainda ser uma planície monótona onde possivelmente cresceriam beterrabas francesas. Porém, as cordilheiras dos Alpes e dos Vosges, há alguns milhões de anos, inclinaram caprichosamente a borda leste daquela planície. Com os declives ideais, os raios de sol passaram a bater com a angulação adequada, compensando a desvantagem da latitude norte elevada e... voilà, nasceu o champanhe.
Então, incentivados por estes exemplos, poderíamos deduzir uma associação direta entre geologia e vinho?

O legado dos monges

Os vinhos são classificados através de diversas siglas que lhes conferem reconhecimento de qualidade e podem delimitar regiões de produção. Em Portugal, por exemplo, os vinhos são candidatos a receber, em ordem crescente de qualidade, as seguintes classificações: VM (Vinho de Mesa - não confundir com os vinhos de mesa brasileiros), VR (Vinho Regional), IPR (Indicação de Proveniência Regulamentada) e DOC (Denominação de Origem Controlada). O Marquês de Pombal inaugurou este hábito no mundo todo quando atribuiu ao vinho do Porto, no século XVIII, a proteção de denominação de origem.

A classificação DOC portuguesa é o equivalente à AOC (Appellation d'origine contrôlée) francesa, à DOC (Denominazione di origine controllata) italiana e à DO (Denominación de Origen) espanhola.

Na antiguidade, gregos e romanos já haviam desenvolvido um sistema de denominação para proteger e garantir a origem dos vinhos de prestígio. Na Idade Média, monges cistercienses unificavam o vinho a partir de uma região definida, na Borgonha, por reconhecerem a importância do terreno para o vinhedo. Dizem que eles provavam o solo na busca do terreno que desse melhor sabor ao vinho, pois acreditam que as videiras retiravam do solo a água e tudo mais que precisavam para crescer. Ou seja, para eles o vinho era feito do solo! 

E parecia ser uma boa ideia. Conferir sentido de localidade ao vinho lhe viabilizava (e continua a viabilizar) um marketing poderoso. Não se pode com facilidade replicar, simultaneamente, a geologia, a topografia e o clima das vinhas em outras regiões. Muitos vinhos clássicos, como o Grand Cru da Borgonha que vêm de locais com uma geologia particular, beneficiam-se desta estratégia. 

Rótulo antigo de vinho da Borgonha, indicando a denominação de origem controlada - "appellation controlée" (por Wikimedia)

Foram os monges borgonheses que estabeleceram as fronteiras para muitos dos vinhedos Grand Cru que ainda existem atualmente. Seu trabalho fundamentou a appellation contrôlée e, seguramente, aqueles antigos monges ficariam orgulhosos do seu legado.

O legado da ciência

O entusiasmo devido à contribuição da geologia à enologia, entretanto, é algo bem mais novo e ainda não se sabe exatamente como tal contribuição se processa. Ao descobrir a fotossíntese, a ciência mostrou que as videiras são feitas, de alguma forma, de sol, ar e água. Elas usam a luz do sol para extrair dióxido de carbono do ar e, ao combiná-lo com a água do solo, produzem todos os compostos de carboidratos necessários. Durante o amadurecimento das uvas, os precursores do sabor se desenvolvem e, na fermentação, são convertidos em centenas de compostos aromáticos que, finalmente, determinarão o sabor e o aroma do vinho.

O solo, por sua vez, influencia o modo como as raízes coletam a água para que as uvas se encorpem e amadureçam. Quase todos os 14 elementos essenciais ao cultivo da videira vêm do solo e alguns chegam ao vinho, embora em quantidades muito pequenas, provavelmente com algum poder para participar da composição dos sabores perceptíveis.

No caso das videiras, os nutrientes minerais principais são:
  • Nitrogênio: pequenas variações em sua absorção afetam o crescimento vegetativo da videira e a maneira pela qual a levedura, constituída por tipos de fungos, metaboliza o mosto, ou seja, o sumo das uvas. A maior parte do nitrogênio vem do húmus, a porção orgânica do solo.
  • Fósforo e enxofre: a maior parte deles também vem do húmus.
  • Cálciomagnésio e potássio: são derivados inteiramente do solo. O cálcio influencia o pH do solo e, consequentemente, a disponibilidade de outros nutrientes.
  • Ferromanganêszinco e cobre: também são derivados dos minerais que compõem o solo. São micronutrientes que, em excesso, podem causar toxidade.
Todos (animais e plantas) precisamos de nutrientes minerais. Em relação às videiras, os nutrientes são:
  • derivados: ou seja, não chegam às videiras exatamente como são encontrados nas rochas;
  • necessários: precisam estar disponíveis embora em quantidades muito pequenas (partes por milhão ou menos);
  • suficientes: a maioria dos solos tem reservas suficientes de nutrientes para atender os requisitos extraordinariamente modestos das videiras;
  • corrigíveis: os vinicultores podem e devem corrigir quaisquer inadequações detectadas; e
  • regulados: as raízes das videira regulam, de forma não passiva, a absorção dos nutrientes que a água do solo tenha dissolvido.
Videiras da Vinícola Miolo, no Vale dos Vinhedos, que absorvem nutrientes do solo de basalto, em Bento Gonçalves, no Brasil (foto: letárgico)

As raízes das videiras absorvem os nutrientes minerais na forma solúvel, sendo necessárias várias transformações para a obtenção dos mesmos. Como a maioria dos minerais é complexa, também são complexos os processos de absorção, envolvendo água, ar e impurezas. 

Por exemplo, no distrito de Lodi, na Califórnia, as videiras adquirem potássio dos granitos da região. A desintegração física da rocha expõe os constituintes através do intemperismo. A muscovita, que contém potássio, ao se intemperizar, converte-se em grãos soltos e minúsculos de vermiculita, ficando mais facilmente sujeita a novas reações. Ao final, cerca de 2% do potássio original é liberado às videiras em forma dissolvida.

A complexidade da produção de uvas e vinhos se deve ainda a fatores climáticos, incluindo as variações de temperatura e de nível pluviométrico.


Vinícola Concha y Toro, tendo os Andes ao fundo, na região de Puente Alto, no Chile, com temperaturas geralmente entre 2 e 29ºC e considerável variação de precipitação pluviométrica (foto: Fsanchezs)

Legado da geologia

As relações entre os minerais e o conteúdo inorgânico do vinho acabado são complexas e indiretas tornando difícil a análise das possíveis "impressões digitais", em nível químico, sobre a proveniência do vinho. Além dos fatores já mencionados, há outros a considerar, como a microbiologia e a própria atividade humana no tratamento das vinhas, que são rotineiramente esculpidas, fertilizadas e irrigadas. Com tantos fatores em jogo, estudos aprofundados para avaliar a real contribuição da geologia ao vinho continuam sendo necessários.

De qualquer forma, em climas quentes, propensos à seca no verão, o solo ganha importância para a qualidade do vinho, embora o fator preponderante, nestes casos, ainda seja o cultivo propriamente dito das videiras. Por outro lado, nos climas mais frios, uma combinação de fatores geomorfológicos e geológicos podem ter influência fundamental. Mesmo assim, apenas raramente a rocha-mãe tem sido reconhecida como um fator relevante com efeito direto constatado na qualidade do vinho. 


Vinhedos na região vinícola portuguesa do Douro, em solo de xisto que retém o calor durante o dia e libera gradualmente à noite (foto: olhodemat)

Alguns pontos, quanto à contribuição do leito rochoso, podem ser destacados:
  • Em períodos de seca, a alta porosidade e a baixa permeabilidade (tanto no solo como na rocha subjacente) trazem vantagens. Além do calcário, que proporciona porosidade e permeabilidade ideais para a viticultura de forma consistente, também trazem benefícios os xistos e os granitos profundamente intemperizados e fraturados. Exemplos:
    • No Douro, em Portugal, as regiões com xisto, que é mais fraturado, são preferidas em relação às de granito, embora ambas sejam ricas em potássio. 
    • A qualidade dos melhores vinhos de Coonawarra, do sul da Austrália, tem sido amplamente atribuída à existência de uma estreita faixa de solo de laterita chamado Terra Rossa. Este solo cobre a Formação Padthaway do Pleistoceno Superior, constituída por dolomitos lacustres e lagunares, calcário, argilito e arenito. O calcário Padthaway sob o Terra Rossa é altamente poroso, com permeabilidade variável, permitindo condições ideias de drenagem e de manutenção de umidade para as videiras mesmo durante meses sem chuva.
  • Não são adequadas as condições onde o leito de rocha é inclinado e impermeável, como no caso dos xistos não fraturados. Nestes casos, a drenagem através da rocha é muito lenta e a maior parte da água, através do escoamento superficial, leva consigo o solo.
  • A abundância nos solos de K+ (cátion potássico), que está presente principalmente em feldspato de potássio e micas, é vantajosa para as videiras, sendo essencial para o desenvolvimento das uvas.
  • Há outros casos onde a mineralogia dá sua contribuição. Exemplo:
    • O caráter particular e a robustez dos vinhos Moulin-a-Vent, de Beaujolais, na França, podem ser atribuídos à presença de granito rico em manganês.
Vinhedos na região vinícola sul-africana de Stellenbosch, tendo ao fundo as montanhas de granito (foto: Deon Maritz)

Em geral, vinhos de solos rochosos tendem a ser mais frescos, mais claros e mais finos do que os vinhos de solos argilosos. Estes podem produzir vinhos com textura mais rica e com menos acidez. Dentre os diversos tipos de rochas estudados, merecem nota os seguintes:
  • Anfibolito: presente em importantes partes da região vinícola de Muscadet, na França.
  • Ardósia: por ser escura, tem uma excelente capacidade para armazenar calor, sendo ideal em climas mais frios. Seu solo é rico em minerais e ocorre em muitos lugares na Europa, porém tem reconhecimento mundial pelos vinhos Riesling de Mosel, na Alemanha.
  • Basalto: dá origem a solo fértil estando associado a numerosos vinhedos ao redor do mundo, como o Somlo Hill, na Hungria, o Madeira, na ilha da Madeira, e o Islas Canarias, nas Ilhas Canárias. Em geral, o solo de basalto produz vinhos com uma acidez bastante apreciada.
  • Calcário: seu solo armazena bem a água sem permitir que se acumule, garante baixas temperaturas que retardam a maturação das uvas e proporcionam uma boa acidez. Comparado com outros tipos de rochas, o calcário produz solo geralmente com menor teor de ferro. Por isto, é mais propício ao cultivo de uvas brancas, que requerem menos ferro do que as uvas vermelhas.
    • No norte da Europa, os mares eram excepcionalmente ricos em algas microscópicas com esqueletos de calcita cujos restos se acumularam em calcário e beneficiaram alguns vinhedos em Champagne, na França, e outros no sul da Inglaterra.
  • Granito: seu solo armazena bem o calor e garante a redução da acidez natural das uvas, sendo ideal para as mais ácidas. É um importante tipo de solo francês na Alsácia, em Beaujolais, em grande parte do norte do Rhône e em Cornas. Está presente também em vinhas em áreas ao redor de Stellenbosch, na África do Sul. 
  • Marga: seu solo faz com que as videiras geralmente amadurecem mais tarde. É importante na região italiana do Piemonte.
  • Pórfiro: produz vinho de baixa acidez. Pode ser encontrado, por exemplo, no sul do Tirol, na Itália, e em Nahe, na Alemanha.
  • Quartzito: o pH elevado do seu solo pode reduzir a acidez dos vinhos e sua propriedade de retenção de calor acelera o amadurecimento das uvas, proporcionando um maior teor de álcool. É encontrado em locais como Chateauneuf-du Pape e Boutenac, na França.
  • Rochas de argila: possibilitam um solo quente, macio e fértil, produzindo vinho de alta qualidade, forte e encorpado, como os vinhos Merlot e Cabernet Franc da Château Beauséjour de denominação Saint Émilion, na região vinícola de Bordeaux, na França.

Vinhedos de Langhe na província de Cuneo, em Piemonte, Itália, em solo de marga (foto: Phalaenopsis)

Pinot Noir de Côte d'Or, em solo de calcário, na França (foto: PRA)

Os diversos tipos de uva, entretanto, parecem não escolher o tipo de rocha. Destacam-se os seguintes exemplos:
  • Beaujolais: encontrada, na França, em regiões com rochas sedimentares e metamórficas, além de granito.
  • Gamay: na França, associa-se intimamente ao granito de Beaujolais, mas é apreciada também nos solos vulcânicos de Chateaugay e Côtes d'Auvergne.
  • Muscadet: encontrada, na França, em regiões com diversos tipos de rochas metamórficas e sedimentares.
  • Pinot Noir: obviamente tem sucesso nos solos finos de calcários de Côte d'Or, na França, mas prospera também no espesso aluvião de Bio Bio, no Chile, nos xistos de Otago, na Nova Zelândia, e ainda nos solos basálticos e arenosos do Vale do Willamette, no Oregon, EUA.
  • Riesling: está associada a muitos dos solos escorregadios dos vales do Reno e do Mosel, na Alemanha. Há quem diga que os vinhos Riesling apresentam um gosto de ardósia, porém, na Alsácia, há Rieslings de classe mundial produzidos em arenitos, calcários, conglomerados, granitos, rochas vulcânicas e ainda outras. 
A comunidade de Graach e as vinhas de Riesling no vale do Mosel, na Alemanha, em solos de ardósia (por Pixabay)

O legado do terroir

A palavra francesa terroir não tem equivalente em nenhum outro idioma. É um dos termos mais usados no mundo dos vinhos e provavelmente um dos menos compreendidos principalmente pelos leigos. Deriva de "terre", que significa terra em francês, e tem origem na expressão "le gout de terroir", que pode ser traduzida livremente como "o gosto do lugar".

Em 1999, o geólogo inglês Jake Hancock definiu terroir como "uma área privilegiada com sua própria geologia e seus próprios clima e métodos de viticultura".

O termo terroir carrega implicitamente a tendência de associar os sabores do vinho a aspectos do solo ou do leito rochoso, mas nem tudo é místico. Há casos em que a associação pode ser deduzida. O Cabernet Sauvignon, cultivado nos campos de Golf du Lyon, na França, é descrito como tendo sabores marinhos que encontram justificativa na alta concentração de cloreto de sódio das planícies de areia onde se localiza o vinhedo. Há outras associações, entretanto, que carecem de comprovação.

Terroir sempre foi um termo polêmico. Em 2003, o cientista de solo australiano R. E. White afirmou: "Muitos cientistas admitem que não podem expressar quantitativamente a relação entre o terroir e as características dos vinhos produzidos a partir desse terroir".

O conceito de terroir, entretanto, ganhou em 2014 uma contribuição significativa em nível científico para ampliar o reconhecimento de sua efetividade. Na Califórnia, pesquisadores conseguiram provar que uvas de uma mesma região, ou de uma mesma variedade, costumam estar associadas aos mesmos micro-organismos, como bactérias e fungos. Eles demonstraram que a biogeografia microbiana tem uma associação não aleatória com a uva, em zonas vitícolas, quanto a fatores regionais, varietais e climáticos. 


 O vinho "la nit de les garnatxes" (a noite das grenaches, em catalão) da Adega Capçanes, de Barcelona, Espanha, tem marcada no rótulo sua procedência de solo sobre "calissa" (calcário, em catalão), neste caso (foto: Magnus Reuterdahl). Observaçâo: grenache é um tipo de uva.

Embalado pelo sabor das polêmicas, o conceito de terroir cola-se charmosamente aos rótulos dos vinhos, como nos seguintes exemplos:
  • o [vinhedo do] castelo está sobre calcário arenoso do período cretáceo;
  • as vinhas crescem em solos argilo-calcários com fósseis de conchas marinhas; e
  • nossa vinha possui sedimentos do Triássico e do Jurássico em granulitos proterozoicos ondulantes e migmatitos com numerosos diques de dolerito.
E se insere poeticamente na propaganda das vinícolas:
  • você pode provar a cinza vulcânica do vizinho Vesúvio;
  • o vinho me permite provar o solo e o leito de rocha
  • um sabor de grafite ou de xisto que eu identifico como vindo do solo do Priorat; e
  • em Brouilly há veios de granito azul com nuances nos vinhos.
Não é por acaso que a famosa frase do escritor britânico Robert Louis Stevenson, "O vinho é poesia engarrafada", adorna a entrada de Napa Valley, na Califórnia, EUA.

Entrada de Napa Valey, no condado de Napa, uma região vinícola da Califórnia, EUA (foto: Aaron Logan)

Falar em terroir significa juntar, somar e engarrafar um conjunto de fatores como topografia, geologia, pedologia, drenagem, clima, microclima, castas, intervenção humana, cultura, história e tradição. Le gout de terroir só pode ser entendido quando solo, clima e videira são considerados simultaneamente.



Leia também

A participação da geologia na história e no sabor da cerveja


2 comentários:

Unknown disse...

Posso dar um bom exemplo de terroir. A Galileia e alta Galileia, outrora região de plantio de árvores frutíferas, é uma regiao de vários vinhedos e seu solo ajuda a produzir, por exemplo, um cabernet sauvigon com taninos mais adocicados do que se costuma sentir num cabernet sauvigon.

Anônimo disse...

Ótimo artigo! Sempre pensei nessas relações da geologia com os vinhos mas não havia lido nada ainda a respeito.

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