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6 de junho de 2019

A Terra pulsante - Parte V: o ciclo geomorfológico

Por Marco Gonzalez

Nesta série de textos sobre a Terra pulsante ainda cabe a análise de outro tipo de ciclo da natureza, desta vez relacionado à evolução das paisagens: o Ciclo da Erosão (com ênfase fluvial). Ele pode ser encontrado no estágio final do Ciclo de Wilson.

O Grand Canyon, no Arizona, EUA, e o rio Colorado, um dos agentes responsáveis pela evolução daquela paisagem (Doc Searls)

A construção e o aprimoramento dos modelos de evolução das paisagens são objetivos centrais da geomorfologia. Neste sentido, o geógrafo, geólogo e meteorologista americano William Morris Davis (1850-1934) introduziu o fator tempo neste contexto, estabelecendo uma sistemática de transformações das formas de relevo passando pelos estágios de juventude, maturidade e senilidade. Em 1889, ele propôs o "Ciclo Completo da Vida de um Rio" e, em 1899, apresentou o "Ciclo Geográfico da Erosão" considerando a superfície da Terra sendo esculpida por dois tipos de forças: as endógenas e as exógenas (sendo estas predominantemente fluviais).

O Ciclo Geográfico da Erosão de Davis foi o primeiro modelo de evolução de paisagem a ganhar aceitação, sendo ainda eficiente ferramenta de ensino. Apesar das críticas sofridas, forneceu a noção de estágio de evolução e um "código prático para decifrar a linguagem das formas".

O modelo de Davis continua demonstrando influência por dois motivos: (i) há certo apego dos geomorfólogos aos modelos cíclicos e (ii) as abordagens alternativas (e mesmo as mais recentes modelagens matemáticas) não deram respostas satisfatórias principalmente porque os dados ambientais encontram limites no tempo e no espaço e os sistemas geomorfológicos enfrentam problemas de escala e de complexidade.

Definições

Antes de continuar, é conveniente ter presentes alguns conceitos básicos (fontes: CPRM e IAG) utilizados neste texto. É possível, entretanto, avançar para a próxima seção e voltar aqui sempre que necessário.
  • Denudação. Desgaste da paisagem por processos de intemperismo, erosão e movimento de massa.
  • Diastrofismo. Conjunto de processos tectônicos que produzem transformações dramáticas na forma da superfície da Terra, resultando na formação de bacias geológicas, cadeias de montanhas e outras estruturas menores.
  • Erosão. Processo de desbaste da superfície terrestre através de agentes erosivos (água da chuva ou de rios, vento, geleiras, ondas, correntes e marés), ocorrendo retirada e transporte do material na forma de fragmentos, soluções e coloides.
  • Inselberg (ou morro testemunho ou monadnock). Morro ou elevação topográfica que se destaca em uma superfície de aplainamento representando um relevo residual não aplainado.
O conjunto de Kata Tjuta (ou Montanhas Olga), na Austrália, são inselbergs de arcóseos do neoproterozoico rodeados, na planície, por pedimento (GregTheBusker)
  • Intemperismo. Conjunto de processos químicos, físicos e/ou biológicos de decomposição de rochas, quando expostas à atmosfera, à hidrosfera e/ou à biosfera, causados por agentes geológicos diversos.
  • Pedimento. Capeamento geralmente pouco espesso, de material clástico colúvio-elúvio-aluvionar residual, sobre região aplainada desenvolvida por processos de erosão na base de uma encosta.
  • Pediplano. Extensa superfície aplainada que se caracteriza por apresentar pedimento, litossolos e/ou extensos afloramentos.
  • Peneplano. Região geomorfologicamente madura, com topografia plana e algum relevo suave, desenvolvida por processo erosivo.

Ciclo da Erosão (Fluvial)

A tectônica de placas e a dinâmica do manto profundo se encarregam de movimentar verticalmente a superfície da Terra, enquanto processos de denudação procuram contrabalançar estes movimentos.

No estágio em Sutura, o penúltimo estágio do Ciclo de Wilson, desenvolvem-se cadeias de montanhas que causam espessamento da crosta continental com elevação da superfície. No estágio seguinte, em Peneplano, a erosão peneplaniza o relevo, aproximando-o em altitude ao nível do mar.

Davis descreve este processo em seu Ciclo Geográfico da Erosão. Este ciclo constitui um período de tempo durante o qual uma massa de terra elevada sofre transformação em sua forma. Ela passa pelos estágios de juventude, maturidade e senilidade, até ser formado um peneplano. O modelo de Davis, também conhecido como "Ciclo Geográfico" ou simplesmente "Ciclo da Erosão", estabelece que uma paisagem depende de três fatores, o "trio de Davis", que são:
  • estrutura, que constitui as características litológicas e estruturais das rochas, 
  • processo, que é operado pelos agentes de denudação onde predominam os processos fluviais (para Davis, o ciclo normal da erosão está associado ao ciclo fluvial), e 
  • tempo, que é ressaltado pelos estágios de transformação.
Nestes estágios as características geomorfológicas resultam da interação entre forças endógenas (diastrofismo) e forças exógenas (denudação).
Representação do Ciclo Geográfico de Davis (adaptado de geographynotes)
CS = curva que passa pelas cristas dos divisores de água
CI = curva que passa pela maior profundidade dos vales
AB = relevo relativo no início do estágio de Juventude
CD = relevo relativo no início do estágio de Maturidade
EF = relevo relativo no início do estágio de Senilidade
Nível Base = nível do mar

Estágio de Juventude

estágio de juventude é caracterizado por uma rápida taxa de erosão vertical com aprofundamento dos vales. Sendo o gradiente do canal muito íngreme, aumentam a velocidade e a energia cinética do fluxo do rio, fazendo com que também cresça sua capacidade de transporte. Rochas grandes e angulosas são carregadas favorecendo a incisão do vale.


Rio Marsyangdi, no Nepal, em vale aprofundado (Sergey Ashmarin

A Curva Inferior (ver gráfico acima) cai rapidamente, pois há forte erosão vertical com aprofundamento dos vales. A Curva Superior cai menos rapidamente já que a erosão nas cristas dos divisores de água é insignificante. Assim, o relevo relativo continua a aumentar desde AB até CD.

Este estágio é caracterizado por:
  • vales em forma de V com encostas laterais convexas,
  • forma global do vale em desfiladeiro, e
  • perfis longos dos rios com corredeiras e quedas d'água gradualmente diminuindo com o tempo e praticamente desaparecendo até o final do estágio. 

Estágio de Maturidade

Este estágio é caracterizado por erosão lateral acentuada e integração da rede de drenagem. A erosão vertical e o aprofundamento do vale são notavelmente reduzidos devido à diminuição substancial do gradiente do canal, da velocidade do fluxo e da capacidade de transporte dos rios. A velocidade do fluxo diminui devido ao acúmulo dos sedimentos.

Rio Shotover na região de Otago, na Nova Zelandia, com fluxo lento e bancos de sedimentos (Bernard Spragg)

Os cumes dos divisores de água também são erodidos e, portanto, há queda na Curva Superior (ver gráfico acima). A erosão lateral cria largos vales.

Estágio de Senilidade

No estágio de senilidade, o estado de peneplano é alcançado pela reorganização espontânea em equilíbrio. Neste estágio há ausência quase total do aprofundamento dos vales já que o gradiente de canal é extremamente baixo e a energia cinética está notavelmente reduzida. A erosão lateral e o alargamento, entretanto, ainda estão ativos. Os divisores de água são mais rapidamente erodidos e a Curva Superior (ver gráfico acima) cai mais rapidamente.

Meandros bem desenvolvidos do rio Cuckmere no sul da Inglaterra, nas proximidades da sua foz no Canal da Mancha (Marturius)

Os vales amplos tornam-se quase planos com encostas laterais côncavas e suavemente inclinadas. Há extensas planícies aluviais, meandros bem desenvolvidos, inselbergs convexo-côncavos residuais e planícies onduladas extensas de relevo extremamente baixo. Toda a paisagem é transformada em um peneplano.

A duração do estágio de senilidade é muito superior à soma dos tempos dos estágios de juventude e maturidade.

Pontos positivos

modelo de Davis (i) é simples e aplicável, (ii) baseia-se em observações de campo detalhadas e cuidadosas, (iii) sintetizou os pensamentos geológicos incorporando o conceito de Nível Base e a classificação de formação de vales fluviais, o conceito de "fluxos regularizados" de G. K. Gilbert e o conceito de "perfil de equilíbrio" de pesquisadores franceses e (iv) é coerente com a natureza cíclica de James Hutton sobre a história da Terra.

Pontos negativos

Entre os principais pontos negativos do modelo de Davis podem ser incluídos (i) o conceito de erosão só após elevação completa e (ii) a necessidade de longo período de estabilidade crustal. No primeiro ponto, Davis admitiu que excluiu deliberadamente a erosão da fase de elevação para simplificar o modelo e por ela ser insignificante durante esta fase. No segundo ponto negativo, quando a estabilidade não é longa, de acordo com Davis, a interrupção do ciclo não é um obstáculo ao seu modelo pois um novo ciclo pode perfeitamente iniciar após o atual ter sido interrompido.

Principais teorias alternativas

Como propostas que incluem modificações ao modelo Davisiano, têm sido apresentadas diversas alternativas. A seguir, são descritas algumas mais clássicas.

Teoria de Penck

O geomorfólogo alemão Walther Penck (1888-1923) apresentou sua tese de evolução da paisagem em 1924. Ele relacionou as características das formas de relevo à atividade tectônica. As formas geomorfológicas expressam, neste modelo, a interação contínua entre as fases de elevação e degradação sem haver uma sequência progressiva.

Corredeiras do rio Preto no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, Brasil, (UNiesert), onde a erosão das águas segue em busca de equilíbrio
As premissas principais deste modelo são:
  • O equilíbrio entre os estados crustais depende: 
    • da erosão vertical, quando a elevação crustal é constante por longo tempo; 
    • do aumento do gradiente do canal, quando a elevação crustal supera o aprofundamento do vale; e 
    • da redução do gradiente do canal, quando o aprofundamento do vale supera a elevação crustal.
  • As características geomorfológicas, que resultam da competição entre o movimento crustal e os processos de denudação, são a base para o entendimento dos movimentos tectônicos e para a determinação das suas causas.
  • Elevação e erosão coexistem, independentemente de uma sequência temporal.
  • A forma da encosta depende da relação entre a incisão do vale pelos rios e a remoção de detritos. 
Pediplanação de King

O geólogo sul-africano Lester Charles King (1907-1989), em seu livro "A Textbook of Geomorphology" (primeira edição em 1942) apresentou estudos sobre as regiões áridas, semi-áridas e de savana da África. Ele propôs o Ciclo de Pediplanação, que seria também praticável em outras partes do globo, com três elementos básicos:
  • frontões rochosos com declives côncavos em ângulos de 1,5° a 7°, cortando rochas sólidas e ladeando vales fluviais; 
  • escarpas com declives íngremes em ângulos de 15° a 30° e recuo paralelo devido à erosão por intemperismo e chuva, limitando as terras altas; e
  • colinas residuais em declive acentuado constituindo inselbergs com formas e tamanhos variados.
Frontões rochosos, ao fundo, e pediplano, em primeiro plano, com pedimento, na Namíbia (Thomas Wagner)

O Ciclo de Pediplanação de King resulta de processos gêmeos de retração e formação de pedimento. Ocorrem as mesmas etapas de juventude, maturidade e senilidade, como no ciclo Davisiano de erosão, porém, uma vez formado o peneplano, ele é consumido progressivamente pelo recuo de nova escarpa para formar novo peneplano, reduzindo o anterior.

Davis e King divergiam quanto ao que seria o ciclo normal da erosão. Enquanto para Davis ele seria fluvial, para King seria árido.

Etchplanação de Büdel

O geomorfologista alemão Julius Büdel (1903-1983) expandiu o conceito "etch", a partir de 1957, considerando que há uma "integração dialética" entre a alteração geoquímica das rochas e a erosão superficial, com a criação de uma superfície dupla de aplainamento (einebnungsfläche): a superfície topográfica e outra subsuperficial (superfície basal de intemperismo ou front de alteração) existente no contato entre a rocha e a zona de alteração.

Esta teoria leva em conta o intemperismo profundo e ocorre principalmente em climas subtropicais, onde períodos sucessivos de umidade e secura existem. As planícies, neste modelo, são raramente planas, pois o intemperismo do leito rochoso não é uniforme.

Equilíbrio Dinâmico de Hack

A teoria do equilíbrio dinâmico derivou dos princípios relacionados à Teoria Geral dos Sistemas, tendo sido sistematizada, em 1960, pelo geomorfologista americano John T. Hack (1913-1991).

Esta teoria se baseia no equilíbrio entre os processos morfogênicos e a resistência das rochas, além de considerar influências diastróficas. O sistema geomorfológico é considerado um sistema aberto e, sob energia constante, a paisagem permanece em estado estacionário apesar dos processos denudacionais. O desenvolvimento da paisagem, independente do tempo, reflete o equilíbrio entre a resistência dos materiais subjacentes à erosão e a energia erosiva dos processos ativos.

A complexidade da evolução das paisagens

Os modelos de evolução de paisagens tinham o objetivo de descrever a evolução sequencial das paisagens, sendo o Ciclo Geográfico da Erosão de Davis um exemplo clássico. A partir de meados da década de 1990, estes modelos adquiriram status de modelagem matemática. A evolução de uma paisagem tem sido frequentemente representada por equações diferenciais parciais resolvidas numericamente tentando descrever como um conjunto de processos afeta a topografia e é influenciado por ela.

Características particulares da geologia trazem complexidade a qualquer modelo de evolução de paisagem. É o caso, por exemplo, das escarpas de Drakensberg, na região do desfiladeiro do Rio Blyde, no leste de Mpumalanga, na África do Sul (Lukas Kaffer)

Os modelos de evolução das paisagens, ou seja, a descrição das relações entre as formas de relevo e os processos que as formam, são de difícil formulação. Essas relações podem ser observadas ou inferidas de maneira relativamente direta em pequenas escalas espaciais e temporais. Por outro lado, em escala espacial que considere toda a paisagem e em escalas de tempo geológico, elas são suficientemente complexas para tornar penosa a proposição de um modelo que se aproxime da realidade. Por esta razão, há uma tendência dos estudos geomorfológicos adotarem escalas espaciais e temporais menores. Nestes casos, porém, os ciclos completos, se existirem, são de difíceis observação e entendimento.

Um comentário:

Unknown disse...

Pienso que cada cuenca hidrografica tiene su propio diseño en el tiempo y son el rango de intensidad de cada uno de los factores que intervienen que le dan los rasgos que ahora tiene. Puede haber similares pero nunca iguales, porque algunos parametros dejan de influir en una cuenca y en otras seguir. Lo que si es general son los factores, tectonismo, gravedad y tiempo que no dejan de estar presentes y la geomorfologia actual nos muestra los tres estados de juventud, madurez y senectud presentes.

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