Situação atual da cava do garimpo de Serra Pelada (composição - as fotos são de autoria de Hallel)
No Brasil, quando se pensa em ouro, irremediavelmente vem à mente o fenômeno do garimpo de Serra Pelada. Este texto procura discuti-lo sob diversos aspectos relembrando fatos entremeados de sonhos e lama.
O Garimpo
Serra Pelada situa-se a sudeste do estado do Pará, a cerca de 550 km ao sul da capital Belém, no município de Curionópolis. Uma das versões da sua descoberta relata que um vaqueiro da fazenda do "velho Genésio" encontrou a primeira pepita em aluviões do córrego conhecido como Grota Rica em dezembro de 1979. Noticiada a descoberta, em dois meses, de fevereiro a março de 1980, mais de 30 mil homens lá estavam transformados em garimpeiros da própria sorte.
Região de Serra Pelada junto à Vila dos Garimpeiros, no município de Curionópolis, PA
A maior pepita de ouro em exposição no mundo (62,1 quilos) foi encontrada por um daqueles garimpeiros. Ela pode ser vista no Museu de Valores do Banco Central.
O garimpo de Serra Pelada lapidou um mito, o Major Curió, formado no combate à guerrilha do Araguaia. Ele foi coordenador do garimpo de 1980 a 1981, fundador da cidade de Curionópolis, deputado federal eleito pelo Pará em 1982, presidente eleito da Cooperativa de Garimpeiros de Serra Pelada (Coomigasp) em 1996 e prefeito de Curionópolis eleito em 2000 e reeleito em 2004. Em 2009, teve seus direitos políticos cassados por cinco anos por improbidades administrativas ocorridas entre 2001 e 2004.
Além do mito, alguns números têm destaque na história do garimpo. Estima-se que cerca de 2 milhões de onças de ouro (cerca de 57 t), incluindo os subprodutos paládio e platina, foram extraídas pelos garimpeiros de forma artesanal. No auge do garimpo, de 1980 a 1986, calcula-se que teriam estado em Serra Pelada de 70 a 120 mil trabalhadores. A população média, entre 1975 e 1986, teria sido de 40 mil garimpeiros. No final, em 1992, a cava do garimpo atingiu 200 m de diâmetro por 80 m de profundidade.
Em busca do ouro
Com pá e picareta, a extração do minério acontecia na fundo da cava que era subdividida em centenas de áreas, ou "barrancos", contabilizados em cerca de 300 no auge do garimpo.
Na fase inicial, cada barranco era obtido através da lei do mais forte e, posteriormente, eles passaram a ser sorteados entre os candidatos. Cada barranco, desta forma, tinha um "dono" com direito à escritura.
Cada "capitalista" (proprietário de barranco) tinha seus funcionários garimpeiros que escavavam o que encontravam pela frente em um espaço de 2 por 3 m. Todos eram assalariados, com exceção do "meia-praça" que coordenava a escavação. Este recebia 2 a 5% do ouro encontrado.
Como cada grupo escavava com a velocidade que conseguia, surgiam desníveis entre os barrancos que, frequentemente, provocavam desabamentos. Por segurança, cordas de nylon azuis amarravam psicologicamente os garimpeiros à vida.
Os "cavadores" dilaceravam a rocha com picaretas e, em seguida, os "formigas" retiravam o material carregando-o em sacos de até 35 kg. Estes eram controlados por um "apontador" na parte de baixo antes que subissem as longas escadas chamadas "adeus-mamãe". Outro "apontador" conferia a chegada na parte de cima da cava e o pagamento era proporcional ao peso carregado.
O material era entregue ao dono do barranco que os levava à sua refinadora onde era triturado e tratado com mercúrio. Posteriormente tudo era fundido no barracão da Caixa Econômica Federal que comprava o lingote produzido.
Para viabilizar esse processo, bombas de sucção eram usadas no "tilim", o fundo da cava, para a retirada da água que se infiltrava do solo e para que todos prosseguissem os trabalhos.
Ambições, frustrações e conflitos
Em 1984, a então estatal Companhia Vale do Rio Doce, detentora do direito de exploração mineral da área, recebeu uma indenização de US$ 69 milhões e foi acordado o fechamento do garimpo em três anos. Previa-se que, neste período, a cava chegaria à cota 190 (medida em relação ao nível do mar). Os garimpeiros não precisaram de mais nada para acreditarem que abaixo daquela cota encontrariam a maior parte do ouro e com maior pureza. A busca desenfreada contabilizou mais vidas na estatística das que ali ficaram soterradas.
Ainda que apenas 1% dos garimpeiros "bamburrassem", isto é, encontrassem ouro em quantidade, muitas são as histórias de enriquecimento relâmpago em Serra Pelada. Como a do maranhense que fretou um avião de carreira para encontrar a namorada no Rio, onde passou dois meses hospedado no Copacabana Palace. Outro, vindo do Espírito Santo, promoveu festas caríssimas bancadas literalmente a peso de ouro. São histórias que se repetiram, como a de um ex-vaqueiro, também oriundo do Maranhão, que deixou mulher e seis filhos, cavou 5 quilos de ouro e, como os "bamburrados" anteriores, perdeu tudo. Muitos continuam lá e não pretendem voltar de mãos vazias.
São histórias de ambições, frustrações e conflitos que nunca se encerraram. Em 2008, por exemplo, os garimpeiros voltaram a se enfrentar, ficando clara a tensão na cidade de Curionópolis. Em 2013, o Ministério Público Federal do Pará apurou irregularidades na Coomigasp, com suspeitas de desvio de mais de R$ 50 milhões, e em 2014 já haviam assinaturas suficientes para a abertura de uma CPI na Câmara, em Brasília.
Tudo porque a geologia da Amazônia reservou para Serra Pelada uma dose generosa de pepitas de ouro.
A geologia
Tanto o Grupo Grão-Pará, uma sequência metavulcano-sedimentar metamorfizada, quanto o Grupo Rio Novo, com rochas supracrustais de natureza vulcano-sedimentar metamorfizadas, estão incluídos no Supergrupo Itacaiúnas. Este faz parte do Cinturão de Cisalhamento Itacaiúnas, com rochas vulcânicas e sedimentares sobre um embasamento de crosta continental. Essas rochas localizam-se ao norte da Província Mineral de Carajás que, por sua vez, fica ao norte do Bloco Carajás da chamada Província Amazônia Central. Tudo isso é compreendido pelo Cráton Amazônico.
Neste contexto, cortadas por intrusões graníticas, de idade 1.88 Ga, e por outras rochas intrusivas de idade incerta, as rochas aflorantes na região de Serra Pelada são formadas por duas unidades principais: (i) uma inferior, composta por rochas metavulcano-sedimentares do grupo Rio Novo e sericita-quartzo xistos indivisos, e (ii) uma sequência metassedimentar discordante, onde ocorre a mineralização, pertencente à formação Águas Claras/Rio Fresco, parte superior do Grupo Grão-Pará.
Mapeamento de 2013 da CPRM na região de Serra Pelada encontrou metapelitos e metassiltitos intercalados com meta-arenitos moderadamente a bem selecionados, localmente dolomíticos e metaconglomerados polimíticos a monomíticos, metamorfisados em fácies sub-xisto verde. Este conjunto é identificado, neste trabalho, como formação Águas Claras, provavelmente de ambiente de leque subaquoso.
A mineralização aurífera de Serra Pelada estaria relacionada a zonas de cisalhamento regionais e a um foco hidrotermal profundo.
Pesquisa da Colossus Minerals, em 2011, revelou resultados interessantes em Serra Pelada. Um testemunho de sondagem encontrou ao longo de 0,7 m, 713 g/t de ouro e 727 g/t de paládio. Outro indicou 1.494,7 g/t de ouro, 516,6 g/t de platina e 558,9 g/t de paládio, ao longo de 7,3 m, iniciando 237 m abaixo da superfície. O ouro está lá, mas o custo da extração tem de ser comparado com o valor do metal.
O ouro
O preço do ouro sobe em momentos de instabilidade econômica e isto tem acontecido desde o início deste século, embora a tendência atual seja de oscilações. Recentemente foi prevista uma pressão ascendente sobre o preço do metal em razão da diminuição de novas descobertas de depósitos e da proximidade do final das principais jazidas em operação, incluindo a maior mina de ouro da Austrália.
Preço da onça de Ouro em dólares americanos (fonte)
Em 2012 o preço do ouro quase dobrou em relação a 2008, ano que marcou o início da última crise econômica global. Esta valorização provocou uma nova corrida pelo metal na América do Sul com minas desativadas sendo reabertas e acontecendo uma migração em massa para áreas de garimpo, como ocorreu no Peru. Um exemplo no Brasil foi Pilar de Goiás, em Goiás, com a retomada da produção da mina em 2013.
Em 2014, as reservas lavráveis conhecidas de ouro no Brasil eram de 2.400 t, correspondendo a 4,3% das reservas mundiais. No mesmo ano, a produção oficial de garimpos alcançou 9,9 t, com destaque para Mato Grosso (44,1%), Pará (41,7) e Rondônia (7,4%). A produção de ouro em 2015 é apresentada a seguir, incluindo minas e garimpos.
Local
|
Quantidade
(t) |
Contido
(kg)
|
teor médio
(%)
|
Minas Gerais
|
31.969
|
31.969
|
100,00
|
Pará
|
17.168
|
17.168
|
100,00
|
Mato Grosso
|
10.864
|
10.853
|
99,90
|
Goiás
|
10.404
|
10.404
|
100,00
|
Bahia
|
5.210
|
5.210
|
100,00
|
Amapá
|
4.250
|
4.199
|
98,80
|
Rondônia
|
1.497
|
1.497
|
100,00
|
Maranhão
|
1.311
|
1.220
|
93,05
|
Paraná
|
332
|
332
|
99,99
|
Amazonas
|
205
|
205
|
99,99
|
Rio Grande do Norte
|
31
|
31
|
100,00
|
Tocantins
|
31
|
30
|
98,29
|
Piauí
|
6
|
6
|
100,00
|
Brasil
|
83.278
|
83.124
|
99,82
|
No segundo semestre de 2016, quando comparado com o mesmo período de 2015, houve um aumento de 10% para 12% na participação do ouro em relação aos montantes de minerais exportados pela indústria extrativa brasileira.
O garimpo de Serra Pelada foi fechado oficialmente em fevereiro de 1992. Em 1994, a Vale já havia investido em pesquisa na região para testar a viabilidade econômica de uma mina subterrânea.
O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) deferiu o pedido de alvará de pesquisa pela Coomigasp, em 2007, e o Ministério de Minas e Energia, em 2010, assinou a concessão de lavra à Serra Pelada Companhia de Desenvolvimento Mineral (SPCDM), criada pela associação da empresa canadense Colossus Minerals Inc. com a Coomigasp.
Os primeiros levantamentos da Colossus apontavam a existência de 50 t de metais preciosos (ouro, platina e paládio) valendo R$ 3 bilhões, a espera de serem encontrados. A empresa canadense pretendia investir R$ 320 milhões na implantação de uma mina subterrânea. Um contrato entre a Colossus e a Coomigasp estabelecia que, quando em operação, os garimpeiros ficassem com 49% dos lucros. Esta porcentagem foi reduzida por aditivo ao contrato para 25% e a previsão era iniciar a produção em 2012.
Em 2014, a Colossus suspendeu as operações justificando ter encontrado dificuldades técnicas e realizou uma série de demissões. A empresa canadense no mesmo ano acusou o recebimento da reclamatória da Coomigasp questionando a validade do contrato entre ambas. Ainda em 2014, a Colossus pediu falência.
Em 2016, a Coomigasp negociou com a Sona Mineração a instalação de projeto para exploração do rejeito do garimpo, com 44% do valor líquido do ouro, da prata e do paládio extraídos sendo destinados aos garimpeiros. Em julho de 2017 foi assinado um aditivo ao contrato entre a Coomigasp e a Soma Mineração para viabilizar o início das atividades do projeto. Neste aditivo a porcentagem para os garimpeiros foi reduzida para 30%.
Enquanto isso, desde novembro de 2013, tramita na Câmara um Projeto de Decreto Legislativo (inteiro teor) que anula a concessão de lavra concedida à SPCDM. Justificam os autores que já haviam sido conferidos originalmente tais direitos à Coomigasp e que a redução da participação dos garimpeiros, para 25% acertada com a Colossus, não havia sido consentida pelos cooperados. Este projeto tem sido arquivado e desarquivado da mesma forma que as tentativas de buscar o ouro que resta perdido em Serra Pelada. Igual sorte têm tido os sonhos de milhares de garimpeiros.
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