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5 de novembro de 2018

Geomitologia: lendas, mitos e geologia

Por Marco Gonzalez


Provocador de maremotos, Poseidon, deus grego dos mares, filho de Cronos, deus do tempo, e Reia, deusa da fertilidade (TNS Sofres)

A história da humanidade foi profundamente afetada pelos eventos geológicos ocorridos na Terra e a percepção desses eventos pelo homem determinou, em muitos casos, o modo como essa história chegou até nós a ponto de fomentar um grande número de crenças nas mais diversas culturas. 

Os antigos gregos e romanos, por exemplo, acreditavam que todas as espécies estavam encolhendo. A dedução parecia lógica. Eles seguidamente encontravam ossos fósseis gigantes que não condiziam com o tamanho de nenhum animal então conhecido. 

Às vezes, as ideias dos cientistas ou filósofos, quando não são formadas com base na investigação científica, podem ser prejudiciais à busca da verdade. Porém, mitos e lendas, frequentemente, têm contribuído para a resolução de muitos problemas geológicos. Sejam essas narrativas de origem clássica ou bíblica, elas têm o poder, em determinados casos, até mesmo de estimular a pesquisa científica. Muitas são formadas por percepções surpreendentemente precisas sobre os processos geológicos envolvidos, bem como produzem importantes dados de fatos testemunhados em passados distantes.

Algumas definições

Mito é um relato fantástico de tradição oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana. Também pode significar uma coisa ou pessoa que não existe, mas que se supõe real.

Período mitológico é o período pré-histórico que se refere aos atos de deuses, divindades e heróis.

Lenda é uma narrativa de caráter maravilhoso onde um fato histórico se amplifica e se transforma sob o efeito da evocação poética ou da imaginação popular. É uma tradição escrita ou oral de coisas muito duvidosas ou inverossímeis. 

Neste texto e naqueles que o seguem, os termos lenda e mito serão tratados indistintamente.

Geomitologia é o estudo das tradições orais etiológicas (que pesquisa causa e/ou origem das coisas) criadas por culturas pré-científicas para explicar fenômenos geológicos que aparecem na metáfora poética e no imaginário mitológico.

Conforme a geóloga americana Dorothy Brauneck Vitaliano (1916-2008), que cunhou o termo em 1967, geomitologia é a aplicação geológica do evemerismo. Nesta teoria sustentada por Euhemerus, o evemerismo, os deuses da mitologia eram apenas mortais deificados. Nela é que se apoia a interpretação dos mitos como relatos tradicionais de personagens e eventos históricos.


Quadro "Deuses no Olimpo" pintado por Domingos Sequeira em 1794 (Foto de Cabral Moncada)

Em sentido mais amplo, a geomitologia tem o objetivo de encontrar o verdadeiro evento geológico subjacente a um mito ou a uma lenda que lhe deu origem. Deste modo, a mitologia é convertida de volta à história através de um embasamento interdisciplinar envolvendo ciência da terra, história, arqueologia, mitologia e folclore. 

A geomitologia tenta, assim, descobrir a conexão que está oculta por trás de cada mito com o paleoambiente de um período. Este processo só se viabiliza com a utilização de algum método científico.

Método científico, como se sabe, é o conjunto de princípios e procedimentos para o estudo sistemático usando evidências que podem ser claramente observadas e testadas.

O imaginário e a ciência

Na época de Platão, os grandes mestres da Grécia ensinavam a história dos mitos aos jovens que, após, recriavam esses contos interpretando-os através da arte dramática em performances nos teatros. O espaço permanentemente aberto para a interpretação e para a contribuição pessoal é uma das principais características dessas narrativas. Esta particularidade favorecia a aplicação didática, demandando intervenções com o objetivo de completar ou recriar possíveis significados.


Afresco "Scuola di Atene" pintado por Rafael, em 1511, representando a Escola de Atenas tendo, ao centro, Platão (apontando para cima) e Aristóteles à direita dele (Wikipedia)

O método e as ferramentas científicas têm tentado trazer luz a tais narrativas em benefício da própria ciência. 

Um bom exemplo é a polêmica das lavas antigas. Houve uma época, quando a geologia ainda era uma ciência muito jovem, em que persistia uma grande controvérsia sobre a origem dessas lavas. Para os "netunistas", elas eram sedimentos marinhos. Para os "plutonistas", sua origem era ígnea. A polêmica continuou até a invenção do microscópio petrográfico, quando a questão foi decidida decisivamente a favor dos plutonistas.

Um aspecto que auxilia a interpretação científica das narrativas dos nossos ancestrais é que tais narrativas frequentemente se caracterizam por ligações muito fortes com o ambiente geológico que é adotado como cenário. Pode-se constatar que, na mitologia escandinava, o gelo é um personagem frequentemente presente. Por outro lado, a temperatura do cenário sobe nas narrativas dos povos da África tropical.

Pode-se também notar que a maioria das principais divindades gregas se caracteriza por dominar aspectos específicos do mundo natural. Estes aspectos hoje determinam, em muitos casos, as subdivisões dos diversos ramos das ciências. Verifica-se que, especificamente, as ciências da terra adotam disciplinas correspondentes aos reinos controlados pelas divindades mitológicas. Eis alguns exemplos:
  • A área dos especialistas focados nas profundezas do nosso planeta era controlada por Plutão e, para os gregos, o responsável era Hades. 
  • Os vulcanólogos tratam de assuntos que, para os romanos, estavam sob os cuidados de Vulcano. Os gregos creditavam esta responsabilidade ao deus ferreiro Hefesto
  • A área de estudo dos oceanógrafos era supervisionada pelo deus romano Netuno. Já os gregos destinavam este serviço a Poseidon.
Tipos de mitos

Os mitos podem ser classificados, quanto à sua associação com a geologia, em dois tipos principais:
  • Mitos associados a aspectos: mitos que resultam de tentativas de explicação de aspectos notáveis do ambiente, como formas de relevo e características incomuns, geralmente através de explicações folclóricas
  • Mitos associados a processos: mitos que tentam explicar processos naturais, geralmente catastróficos, como terremotos, vulcanismo e inundações, através de descrições frequentemente distorcidas.
Arca de Noé e o Dilúvio (Wikimedia Commons)

Pesquisadores descobriram que os mitos que relatam destruições quase sempre descrevem um ou mais dos seguintes fenômenos
  • um grande dilúvio, 
  • um incêndio mundial, 
  • a queda do céu ou 
  • uma grande escuridão.
Os dois últimos geralmente nos remetem a erupções vulcânicas. Por outro lado, histórias com incêndios podem estar associadas a impactos de objetos celestes. Quando dois ou mais desses tipos de fenômenos são descritos na mesma cultura, eles tendem a ganhar alguma consistência.

A seguir são descritos exemplos de lendas e mitos conhecidos regional ou mundialmente. Cada exemplo é complementado com o contexto geológico onde a narrativa se apoia. 



A lenda das três irmãs

A hidra cárstica

Pelé e o vulcanismo do Havaí

Alguns outros mitos


Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interessante e impressionante. Parece que tudo tem a ver com geologia, inclusive os mitos.
Entretanto, espero que algum "mito" hodierno não tenha qualquer relação com a geologia.

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