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15 de novembro de 2024

Paleoclimatologia - Parte 4.1. Modelagem, interpretação e assimilação de dados proxies climáticos

Por Marco Gonzalez

Reconstrução da temperatura média global da superfície para o período dos anos 0 a 2017 a partir da interpretação de dados proxies climáticos e de observações diretas de variáveis climáticas.
As interpretações aparecem em azul escuro com suas incertezas em intervalo acinzentado.
Ambas são provenientes da fase 5 do PAGES 2k Consortium através de modelo climático acoplado do Intercomparison Project.
As observações diretas de 1850 a 2017 aparecem em azul claro e são provenientes do Cowtan and Way.
Os dados estão disponíveis em NOAA Paleoclimate Archive.
(Adaptado de: Carbon Brief).

Este artigo faz parte da série Paleoclimatologia e discute processos de modelagem, de assimilação e de interpretação de dados proxies climáticos, incluindo síntese, calibração e verificação.

4.1.1. Reconstrução paleoclimática

Reconstruções paleoclimáticas são produzidas a partir de múltiplos tipos de dados proxies climáticos, integrados a observações instrumentais modernas, através de modelos climáticos acoplados ou não acoplados.

Reconstrução paleoclimática: processo científico que utiliza dados proxies climáticos para estudar o clima da Terra anterior à disponibilidade de medições diretas. Este processo desempenha papel crucial na compreensão dos padrões climáticos de longo prazo e favorece também o entendimento das atuais alterações do clima comparando condições climáticas passadas e presentes.
Modelo paleoclimáticomodelo climático que tem objetivo de estudar o clima do passado.
Modelo climático: simulação computacional do sistema climático da Terra, com possibilidade de recriar o clima do passado ou prever o clima do futuro através do cálculo de propriedades distintas, como temperatura, pressão, vento e umidade, para milhares de pontos diferentes em uma grade bidimensional ou, quando possível, tridimensional.
Modelo climático acoplado: código de computador que estima a solução para equações diferenciais de movimento de fluidos e de termodinâmica para obter valores dependentes de tempo e espaço para temperatura, ventos, correntes, umidade, salinidade e pressão na atmosfera e nos oceanos. Os componentes deste modelo simulam a atmosfera, os oceanos (incluindo sua biogeoquímica), o gelo e a superfície e a vegetação terrestres.
Modelo climático não acoplado: modelo climático restrito à superfície terrestre e às ondas oceânicas, não incluindo outras informações oceânicas. Sinônimo: modelo somente atmosfera.

Nestas reconstruções podem ser consideradas as seguintes escalas de tempo:
  • longo prazo – centenas de milhões de anos,
  • médio prazo – um milhão de anos,
  • curto prazo – algo em torno de 160.000 anos ou
  • período moderno – centenas de anos.
Cada uma destas escalas afetam de maneiras diferentes as interpretações dos dados proxies climáticos quanto às variações no clima pois suas variáveis têm tendências de longo prazo e variabilidade de curto prazo. Grandes alterações, como as causadas por eras glaciais, podem ser reconhecidas especialmente no longo prazo. A coexistência de tendências de longo e curto prazos constitui um fator de complexidade na reconstrução paleoclimática. Para minimizar esta dificuldade, incertezas podem ser suavizadas através do uso de múltiplos proxies em séries temporais.

4.1.2. Séries temporais paleoclimáticas

Séries temporais paleoclimáticas, ao conter dados proxies em material datado, desempenham papel significativo na Paleoclimatologia há muito tempo.

Série temporal paleoclimática: série temporal que fornece detalhes das condições climáticas através de dados proxies contidos em múltiplos pontos datados. Constitui ferramenta essencial no estudo da dinâmica climática ao viabilizar a análise das interações de diferentes partes dos sistemas climáticos.
Série temporalcoleção de itens de dados bem definidos obtidos por meio de observações/medições repetidas ao longo do tempo.

Estas séries, há décadas, têm possibilitado enormes avanços na compreensão do paleoclima desde a primeira recuperação de registros climáticos contínuos e longos de sedimentos marinhos. A ampliação do entendimento sobre o clima da Terra também se deve a séries temporais climáticas globais coletadas em gelo. Um dos avanços obtidos por estas pesquisas foi a confirmação de que alterações orbitais têm afetado o ritmo dos ciclos glaciais.

Alterações climáticas relevantes podem ser fornecidas por dados proxy climáticos, incluindo informações sobre:
  • eventos repentinos (exemplos: erupções vulcânicas e inundações) e
  • tendências graduais de longo prazo (exemplos: aquecimento e resfriamento, seca, alterações no nível do mar, padrões de ciclones, períodos de monções, flutuação de CO₂ atmosférico e redução de camadas de gelo). 
A confiabilidade e disponibilidade de tais informações são dependentes de duas métricas principais:
  • precisão (ou resolução), que diz respeito ao período de tempo mínimo válido ao qual um dado proxy climático pode fazer referência, e 
  • abrangência, que corresponde ao período de tempo máximo que arquivos proxies climáticos de mesmo tipo podem cobrir.

Precisão e abrangência relacionadas a alguns tipos de arquivos proxies climáticos
grupostipos de
arquivos
proxies
climáticos
precisão
do dado
proxy
abrangência
do arquivo
proxy
rochatestemunho
de rocha
(ou solo)
 século centenas
de anos
afloramento
rochoso
 milênios centenas
de milhões
de anos
mate-
rial
não
litifi-
cado
testemunho de
sedimento
 lacustres:
décadas/
séculos
 marinhos:
séculos/
milênios
 lacustre:
milhões
de anos
 marinho:
dezenas
de milhões
de anos
loess séculos/
milênios
 milhões
de anos
Turfa década dezena
de milhares
de anos
gelotestemunho
de gelo
 ano centenas
de milhares
de anos
geleira ano centenas
de anos
com
taxa
de
cresci-
mento
árvore ano milhares
de anos
coral ano centenas
de anos
esclerosponja ano centenas
de anos
espeleotema décadas/
séculos
 dezenas
de milhares
de anos
outros margem
lacustre
 ano dezenas
de milhares
de anos
monturo de
ratos de carga
 décadas dezenas
de milhares
de anos
pele
de foca
 décadas séculos/
milênios
documento
histórico
 hora/dia centenas
de anos

Nas reconstruções paleoclimáticas, precisão e abrangência ficam prejudicadas quando:
  • o arquivo proxy climático foi destruído, amostrado de forma incompleta ou não foi preservado;
  • a resolução temporal do dado proxy é grosseira ou incerta;
  • a resolução espacial é incompatível com a escala do modelo climático pretendido; ou
  • há perda do significado original do dado proxy climático por este ter sido alterado ou por ter interpretação equivocada. 
A complexidade do processamento de séries temporais paleoclimáticas cresce quando:
  • estão espaçadas de forma desigual no tempo, principalmente porque é comum que o desenvolvimento de arquivos proxies climáticos não seja constante ao longo do tempo;
  • estão impregnadas de ruídos decorrentes tanto de erros analíticos quanto de imperfeições naturais do meio ambiente.
  • apresentam incertezas tanto de datação quanto de interpretação do dado proxy; e
  • exibem tendências determinísticas de longo prazo com possibilidade de mascarar sinais climáticos de menor magnitude mas ainda assim relevantes.
Devido à complexidade da reconstrução paleoclimática, dados proxies contidos em séries temporais climáticas, antes de serem assimilados por um modelo climático, são interpretados através das etapas de síntese e calibração acompanhadas de necessárias verificações.

4.1.3. Interpretação e assimilação de dados proxies climáticos

Os sistemas construídos para interpretação e assimilação de dados proxies climáticos, muitas vezes com objetivos específicos, têm suas abordagens, particularidades e otimizações. O fluxograma que segue tenta se aproximar das configurações que a maioria deles apresentam.

Interpretação e assimilação de dados proxies climáticos.

4.1.3.1. Síntese

Consiste em receber séries temporais paleoclimáticas individualizadas de diversas fontes (diferentes tipos de dados proxies e distintos tipos de arquivos proxies) e processá-las com dois objetivos:
  • padronização através da homogeneização de dados e metadados e
  • obtenção de uma cobertura coerente tanto quanto possível temporal e espacialmente.

Síntese de dadosprocesso que envolve o exame de múltiplas fontes de informação para criar uma imagem coerente por meio da identificação de padrões, conexões e relacionamentos.

Estratégias de síntese de dados podem incluir etapas como:
  • descoberta de dados (seleção e classificação de parâmetros),
  • datação e sincronização temporal,
  • padronização de parâmetros e construção de ontologias,
  • homogeneização de dados e metadados (como identificadores, datas, locais e fontes),
  • homogeneização cronológica e
  • exclusão de ambiguidades.

Ontologiasistema de organização do conhecimento (ou processo de categorização) que consiste em um conjunto de relacionamentos entre elementos (dados) com identificação de seus atributos.
Metadadosinformações que enriquecem dados facilitando que sejam encontrados, usados e gerenciados.

4.1.3.2. Calibração

Consiste na conversão de dados proxies (exemplos: valores de isótopos ou largura de anéis de árvores) em medidas climáticas diretas (exemplos: precipitação ou temperatura). Funções de calibração (ou funções de transferência) podem ser estabelecidas através de técnicas estatísticas envolvendo informações do passado e do presente. Para tanto é preciso assumir que a correlação entre um dado proxy e seu ambiente do passado seja semelhante àquela encontrada atualmente. Há dois tipos usuais de calibração: no tempo e no espaço.

Calibração no tempocalibração que é feita a partir da correlação entre ocorrências de algum tipo de dado proxy moderno (de um período em que há registros climáticos instrumentais) e correspondentes medidas climáticas diretas disponíveis.
Calibração no espaçocalibração que é feita a partir da correlação entre fatores de controle conhecidos e ocorrências de algum tipo de dado proxy moderno considerando uma ampla faixa espacial de ambientes. É adotada quando a correlação no tempo não é possível por inexistência de observações e/ou medidas disponíveis abrangendo um adequado período de tempo.

Em ambos os casos (no tempo ou no espaço), encontradas as correlações entre os dados proxies modernos e as medidas climáticas diretas, tais correlações são aplicadas para converter os dados proxies do passado em correspondentes medidas climáticas.

Representação esquemática do processo de calibração de dados proxies (exemplificados através de anéis de árvores) com:
(i) cálculo da correlação entre espécimes modernos e registros de medida direta (exemplificada através da temperatura) e
(ii) aplicação da correlação encontrada para espécimes fósseis.
(Créditos das imagens: ZIS Lower School/árvores atuais, James St. John/árvores petrificadas e Espen Klem/termômetro).

Um exemplo de calibração no tempo é a que calcula a correlação entre anéis de árvores e temperaturas médias anuais após 1850 e a aplica a anéis de árvores do passado. A calibração no espaço pode ser exemplificada (i) pela correlação calculada entre tipos de pólen e faixas de temperaturas associadas a sedimentos modernos de lagos que é aplicada a polens fósseis ou (ii) pela correlação encontrada entre algas cultivadas em laboratório sob diferentes temperaturas e estas temperaturas, aplicando-a a algas fósseis.

Nestas conversões, em alguns casos, recursos estatísticos sofisticados podem ser usados para distinguir diferentes fatores que afetam os dados proxies e, por consequência, a própria calibração. Sempre que necessário, incertezas são embutidas no processo. Múltiplos proxies e técnicas de verificação cruzada são desejáveis.

A técnica do "parente vivo mais próximo", amplamente utilizada em reconstruções paleoclimáticas, auxilia a calibração em muitos casos. Nesta técnica, são comparados fósseis (de plantas ou animais) com seus correspondentes parentes modernos. São selecionados os que possuem características morfológicas mais semelhantes às dos fósseis permitindo, assim, que se considere que as tolerâncias climáticas para ambos sejam similares. A calibração será mais confiável quanto mais recentes forem os fósseis e quando são determinadas incertezas.

4.1.3.3. Verificação

Incertezas são inerentes à interpretação dos dados proxies climáticos. Elas podem estar associadas a:
  • representação indireta do paleoclima em arquivos proxies climáticos imperfeitos;
  • vieses sazonais;
  • amostragem incorretas de dados proxies climáticos;
  • escassez de dados proxies tanto no espaço quanto no tempo;
  • diversidade de métodos estatísticos utilizados; e
  • suposições usadas na interpretação de dados proxies.
Após a detecção e quantificação de incertezas e também de inconsistências do próprio processamento, são separados sinais e ruídos. Estes podem ser analisados em uma das etapas anteriores (candidatas a possíveis fontes dos mesmos) ou ainda ser tentadas suas eliminações em reinvestigação de campo. Erros não solucionados geram descarte de dados proxies. Tendo sido produzidos sinais climáticos admitidos como corretos em uma série temporal, os dados proxies podem ser assimilados pelo modelo para reconstrução paleoclimática ou previsões do clima.

4.1.3.4. Assimilação

Consiste na assimilação de dados proxies por um modelo climático para preenchimento de lacunas na cobertura espaço-temporal. Sempre são visados o equilíbrio e a compatibilidade entre as variáveis climáticas preexistentes e os próprios dados proxies assimilados.

Assimilação de dados: processo que combina dados em modelos matemáticos para obter representações de estados estatisticamente precisas e confiáveis para sistemas dinâmicos.

O objetivo do processo de assimilação é tornar eficaz a derivação de estimativas significativas dos estados climáticos, levando-se em conta que os dados proxies assimilados sempre são afetados por restrições físicas e dinâmicas. Por esta razão, são exigidos ajustes e otimizações de parâmetros, além de controle de incertezas.

Neste contexto, Filtro de Kalman é um dos métodos de assimilação baseados em conjuntos mais amplamente utilizados.

Filtro de Kalmanmétodo de assimilação de dados que divide o processo em uma etapa de previsão e uma etapa de atualização, permitindo uma implementação algorítmica simples, mas precisa.

Este método trabalha com estados climáticos sendo que cada estado normalmente inclui uma ou mais variáveis climáticas referentes a um conjunto de pontos localizados espacial e cronologicamente. Dentre as abordagens de assimilação com Filtro de Kalman, há:
  • Assimilação Online, onde:
    • um conjunto de estados climáticos é selecionado a partir de simulações que acontecem em evolução cronológica em modelos executados de forma paralela e
    • variáveis destes estados são iterativamente redefinidas pela assimilação dos dados proxy; e
  • Assimilação Offline, onde:
    • a partir da simulação climática de um modelo preexistente, um conjunto de estados climáticos (iniciais) são gerados fornecendo a distribuição dos valores das variáveis do clima,
    • dados proxies são inseridos (assimilados) e
    • o algoritmo atualiza os estados climáticos (iniciais) e gera outros estados (posteriores) para corresponder mais proximamente possível aos proxies assimilados. 
A abordagem offline possui a vantagem de ter um custo computacional menor com resultados semelhantes aos da abordagem online em contextos paleoclimáticos.

4.1.4. Modelagem

Consiste na codificação em linguagem computacional da representação de leis teóricas que governam o clima com o objetivo de sistematizar simulações para reconstrução climática. Na evolução de um modelo climático (acoplado ou não acoplado), a entrada é constituída,
  • na modelagem (construção do modelo), por valores oriundos de medições diretas e,
  • na assimilação, por valores derivados de dados proxies climáticos.
Estes modelos, que resumem nosso conhecimento sobre o clima, amadureceram em capacidade e potencialidade desde a década de 1970. Nesta época as primeiras simulações com "modelos de circulação geral" foram publicados referentes ao Último Máximo Glacial. Desde então estas visões das interações complexas entre clima e meio ambiente, adotando abordagens científicas multidisciplinares, têm melhorado o entendimento dos desafios climáticos que enfrentamos no nosso planeta.

A seguir, um exemplo de modelo climático é comparado com diversos outros registros de temperatura revelando sua capacidade em simular alterações do clima do passado, do presente e do futuro.

Variação da média anual global da temperatura da Terra ao longo dos últimos 400 milhões de anos.
As temperaturas indicadas pelo modelo HadCM3 são comparadas com registros de Royer, Zachos, Lisiecki, Epica e Negrip.
As previsões de temperaturas são baseadas em simulações de HadCM3 com diferentes RCPs.
Transição agricultura-industrialização, períodos da Pré-história e abrangência de gelo são localizados cronologicamente à esquerda e períodos e épocas geológicas, principais características e eventos evolutivos, à direita.
(Adaptado de: Haywood et al).

HadCM3: versão 3 do modelo climático acoplado do Hadley Center, desenvolvido em 1999 e amplamente utilizado para previsão, detecção e atribuição de clima, além de outros estudos de sensibilidade climática. É especialmente útil para detecção e atribuição de mudanças paleoclimáticas.
Royer: registro de temperaturas de superfície com estudos de CO₂ atmosférico e glaciação.
Zachosregistros de temperatura associados ao ciclo do carbono.
Lisieckiregistros de temperatura baseados em isótopos de oxigênio bentônico.
Epica: registros climáticos a partir de testemunhos de gelo através da análise e modelagem do comportamento estocástico de séries temporais paleoclimáticas, com avaliação das implicações para o acoplamento de variáveis ​​climáticas durante os ciclos glaciais do Pleistoceno.
Negripregistros de temperatura (associada a δ18O, Ca2+a partir de testemunhos de gelo no Projeto NGRIP (North Greenland Ice Core Project), perfurados de 1999 a 2003 na Groenlândia central.
RCPs: cenários (Representative Concentration Pathways) produzidos por projeções do modelo climático acoplado da fase 5 do Intercomparison Project referentes a tendências antropogênica com baixa emissão de gases de efeito estufa (RCP2.6), elevada emissão (RCP8.5) e  casos intermediários (RCP4.5 e RCP6.0).




Paleoclimatologia - o clima do passado geológico


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