20 de fevereiro de 2018

Não fique desnorteado com a troca dos polos magnéticos da Terra

Por Marco Gonzalez
Atualização: 17/05/2023

O campo magnético da Terra conecta o Polo Norte (linhas laranja) com o Polo Sul (linhas azuis). Imagem do filme "Dynamic Earth: Exploring Earth's Climate Engine", que utiliza dados de modelos do clima espacial baseados em evento real de ejeção de massa coronal dezembro de 2003 (Crédito: NASA).

Evite ficar repetindo que mundo está virado de cabeça para baixo porque ele pode virar realmente, pelo menos no campo magnético. Sim, é verdade, o campo magnético da Terra tem se alterado e, no futuro, onde era o Norte poderá ser o Sul. Será?

Geração do geomagnetismo

O campo magnético da Terra, ou campo geomagnético com a formação dos polos magnéticos Norte e Sul, é gerado no interior da própria Terra.

A estrutura da Terra e de sua atmosfera (Crédito: Fredrik)
(1) núcleo interno, (2) núcleo externo, (3) manto, (4) astenosfera, (5) litosfera/manto superior, (6) litosfera/crosta, (7) troposfera, estratosfera, mesosfera e (8) termosfera

Bem no centro da Terra, há um núcleo com uma parte interna sólida (com 1.221 km de raio) e uma parte externa líquida fundida (com 2.259 km de espessura). Este conjunto é constituído predominantemente de ferro, além de 20% de níquel. As camadas acima do núcleo (manto, astenosfera e litosfera) têm 2.900 km de espessura e somente depois delas, em direção à superfície, é possível respirar.

Astenosfera: camada entre 60-100 e 250-400 km abaixo da superfície da terra, que faz parte do manto superior. Tem características reológicas plásticas distintas da litosfera acima dela, que é rígida e rúptil. É a principal fonte de magma jovem.
Reologia
estudo do comportamento deformacional e do fluxo de matéria, incluindo as propriedades de elasticidade, viscosidade e plasticidade de uma massa ou corpo rochoso, mineral, magmático, glacial, industrial e outros, submetido a tensões, dadas determinadas condições termodinâmicas ao longo de um intervalo de tempo.

O núcleo do nosso planeta tem tamanho equivalente ao da Lua e é tão quente quanto a superfície do Sol (6.000ºC). Na fronteira entre ele e o manto há uma intensa troca de calor fazendo com que o material quente suba criando correntes de convecção. Esse processo, combinado com a rotação da Terra, produz um fluxo de material quente em espiral. Nesse fluxo, as correntes elétricas geram um campo magnético que as intensifica, alimentando-se recursivamente. O campo magnético cresce tanto que podemos medi-lo na superfície e, neste processo, o níquel é crucial pois possui elétrons que se dispersam com mais facilidade que os do ferro.

Fatores que contribuem para a formação do campo magnético da Terra (Adaptado de: NASA/GSFC/NOAA/USGS e André Z. Colvin)

Acredita-se que, na parte líquida do núcleo, opere uma espécie de dínamo convectivo, conhecido como geodínamo, de acordo com o modelo Glatzmaier-Roberts.

Modelo Glatzmaier-Roberts: no núcleo, a parte interna de ferro sólido cercado pela parte externa de ferro líquido quente, girando com velocidade um pouco maior que a da superfície da Terra, movimenta as cargas elétricas, como um dínamo convectivo, fazendo com que o campo magnético seja mantido.
Dínamo convectivo: mecanismo de geração de um campo magnético pelo movimento convectivo de um fluido eletricamente condutor.

Esse mecanismo pode ser visualizado como um imã que tem seu polo negativo próximo do polo norte geográfico da Terra. Como contrários se atraem, se olharmos a extremidade "norte" (polo positivo) da agulha de uma bússola, veremos que ela aponta nessa mesma direção próxima ao polo norte geográfico terrestre, seguindo a linha do campo magnético.

Efeitos do geomagnetismo

O campo magnético afeta o clima, a tectônica, a gravidade e até a rotação do nosso planeta. No entanto, ele tem uma função importante que é a de desviar a radiação solar da superfície terrestre. Esta proteção contra os raios solares nos poupa de emissões do Sol, como os perigosos prótons de alta energia e a radiação eletromagnética, principalmente os raios-x.

Radiação: energia que se move na forma de partículas ou ondas, como o calor, a luz, as ondas de rádio e as micro-ondas.
Radiação eletromagnética: radiação que viaja através do espaço vazio na velocidade da luz e se propaga pela interação de campos elétricos e magnéticos oscilantes.
Raios-X: radiação ionizante de comprimento de onda extremamente curto e de alta frequência. Ao passar por tecidos vivos, podem causar alterações bioquímicas prejudiciais.

O efeito do geomagnetismo relacionado aos seres vivos é a magnetorecepção, que muitas espécies de animais usam durante as migrações, especialmente as aves. São muitos os exemplos. É o caso das tartarugas e dos animais marinhos, que usam o geomagnetismo para ajustar a direção em que nadam.

Magnetorecepção: conjunto de mecanismos e estruturas pelas quais os organismos podem detectar campos magnéticos naturais e usá-los para fins biologicamente relevantes.

Gansos em migração voando nos céus do Canadá (Crédito: John Benson)

Homogeneidade do campo magnético da Terra

O campo magnético não está distribuído uniformemente em volta do nosso planeta. Algumas razões são especuladas:
  • O movimento do ferro fundido que rodopia dentro do núcleo externo não é homogêneo porque o resfriamento do núcleo é mais lento em algumas regiões devido à menor diferença entre as temperatura locais. Como consequência, os fluxos convectivos são muito mais fracos e, assim, o campo magnético produzido a partir dali é também mais fraco.
  • Há locais na Terra com grandes depósitos de ferro e níquel altamente magnetizados. A República Centro-Africana, por exemplo, é um destes locais onde é encontrado o mais forte magnetismo terrestre, possivelmente por causa de um meteorito que atingiu nosso planeta há 540 milhões de anos.
  • Grandes Províncias de Baixa Velocidade de Cisalhamento impedem a produção de um campo magnético mais forte nas suas proximidades. Um exemplo é a Província Africana, uma enorme quantidade de rochas densas localizadas a ~2.900 km de profundidade sob a África.
Animação mostrando as Grandes Províncias de Baixa Velocidade de Cisalhamento, baseada em tomografia sísmica realizada para análise da morfologia de estruturas do manto inferior sismicamente lentas (Crédito: Sanne.cottaar)

Grandes províncias de baixa velocidade de cisalhamento (LLSPs = Large low-shear-velocity provinces): províncias de origem e dinâmica ainda não bem entendidas, que dominam o manto inferior caracterizadas por uma anticorrelação entre volumes do som e velocidades de ondas de cisalhamento. Provavelmente estas províncias exerçam controle sobre placas tectônicas em subducção, segundo alguns autores, ou sobre a forma plana de convecção no manto inferior, segundo outros. Alguns estudos sugerem que elas têm origem puramente térmica e representam aglomerados de plumas térmicas, embora pareçam ser contínuas na tomografia sísmica.
Onda de cisalhamento (ou Onda S): onda de corpo elástico em que as partículas oscilam perpendicularmente à direção em que ela se propaga. São geradas pela maioria das fontes sísmicas terrestres.

A Grande Província Africana de Baixa Velocidade de Cisalhamento é uma das principais fontes da Anomalia do Atlântico Sul. Nesta área há um enfraquecimento do campo magnético terrestre que não tem efeito sobre a vida na Terra, mas afeta as espaçonaves que passam diretamente através dela.

Anomalia Magnética do Atlântico Sul: anomalia onde a força do campo geomagnético é mais fraca em uma área no espaço que se estende acima da região entre a América do Sul e o sudoeste da África.

Estudos revelam que estas anomalias são recorrentes e a do Atlântico Sul deve desaparecer nas próximas centenas de anos, apesar de ter aumentado 5% entre o início de 2020 e o início de 2023. Ela está lentamente se movendo para noroeste e se dividindo em duas.

Variações do Campo Magnético da Terra em 2020, com destaque para a Anomalia do Atlântico Sul (região mais azulada) (Crédito: Christopher C. Finlay et al)

nT (nanotesla): 10^-9 tesla.
Tesla: unidade de densidade de fluxo magnético no sistema internacional de medidas, definido como equivalente a 1 weber/m2.
Weber: unidade de fluxo magnético no sistema internacional de medidas, definido como a quantidade de fluxo que, ligando um circuíto elétrico de uma volta, produz nele uma força eletromotriz de um volt quando o fluxo é reduzido a zero a uma taxa uniforme em um segundo.

Inversão dos polos magnéticos da Terra

Ao contrário do Polo Norte geográfico da Terra, que é fixo, o norte magnético vagueia. Ele se move lentamente do Ártico canadense em direção à Sibéria.

Sugestão de vídeo: "Movimentação do Polo Magnético da Terra de 1840 a 2019" (Crédito: ESA)
(Na execução, pressione para assistir em tela cheia. Pressione ESC para retornar)

Além desta movimentação, ocorrem inversões dos polos magnéticos da Terra que podem ser classificadas como "reversões" ou "excursões".

Reversão: inversão quando há troca completa dos polos magnéticos.
Excursão: inversão temporária e incompleta, podendo inclusive ultrapassar a linha do equador e voltar.

A última reversão, chamada Brunhes-Matuyama, ocorreu há aproximadamente 780 mil anos e uma excursão, conhecida como evento Laschamp, ocorreu há cerca de 41 mil anos. Nos últimos 20 milhões de anos, a cada 200.000 ou 300.000 anos ocorreram inversões (reversões ou excursões) dos polos magnéticos terrestres.

Informações sobre a direção e a intensidade do geomagnetismo podem ser obtidas na análise de qualquer material que tenha componentes que se orientem pelo campo magnético e tenham seus posicionamentos fixados. Esses materiais são usualmente rochas de diferentes idades com diferentes direções de magnetização, como as geradas a partir de fluxos de lava antigos. O magnetismo de minerais ricos em ferro na lava derretida assume uma orientação e, com o resfriamento e a solidificação, essa orientação é preservada. Também em fragmentos de jarros de cerâmica e argila muito antigos podem ser detectadas pequenas alterações do campo magnético.

Estudos recentes concluem que os polos magnéticos não deverão sofrer inversão tão cedo. Talvez isto ocorra nos próximos 2.000 anos, mas não há certeza, Há uma rede global de observatórios terrestres e satélites em órbita que pode detectar modificações no campo magnético e, a partir daí, deduzir alterações no núcleo do nosso planeta. Mas não se pode ter precisão sobre quando a próxima inversão irá acontecer.

Impactos de uma inversão

Durante o processo de inversão dos polos magnéticos terrestre, que pode durar séculos, ocorre o enfraquecimento do escudo magnético que nos protege dos raios solares e dos raios cósmicos. Tal enfraquecimento permitirá que a radiação chegue à superfície da Terra. Áreas do planeta ficariam inabitáveis ​​e aconteceriam extinções de muitas espécies de seres vivos. Antes disso, porém, os satélites em órbita sofreriam danos que trariam prejuízos às tecnologias das quais somos dependentes. Estes prejuízos alcançariam celulares, eletrodomésticos e GPS, além de serviços essenciais, como os de hospitais.

As tempestades solares podem nos dar uma ideia dos grandes transtornos que aconteceriam. Em 2003, a tempestade Halloween causou apagões na rede elétrica da Suécia, inclusive afetando a aviação ao exigir a alteração em rotas e horários de voos.

Tempestade Halloween, de 2003. Imagem composta (com demarcação de fronteiras e visibilidade de iluminação noturna) com aurora observada pelo satélite DMSP em 30/10/2003. A faixa amarela, na parte superior da imagem, mostra uma intensa aurora principalmente sobre a Noruega e a Suécia (Crédito: Senior Airman Joshua)

Em 13 de março de 1989, toda a província de Quebec, no Canadá, sofreu um apagão elétrico causado por uma tempestade solar. Três dias antes havia sido observada uma explosão poderosa no Sol que liberou uma nuvem de gás de bilhões de toneladas com energia equivalente a milhares de bombas nucleares. Esta nuvem se dirigiu para a Terra em alta velocidade e causou interferências de rádio de ondas curtas. Houve um bloqueio dos sinais da Radio Free Europe para a Rússia e o Kremlin chegou a ser acusado do fato, mas a culpa era do Sol.

Boas notícias

Sim, há boas notícias. Sabe-se que a deriva continental alterou a distribuição dos continentes no globo terrestre e foi verificado que o grau de assimetria dessa distribuição, em relação à linha do equador, tem correlação inversa com o ritmo das inversões magnéticas. É importante salientar também que cerca de 200 milhões de anos atrás havia um único supercontinente, o Pangea, que concentrava toda a massa continental.

No período de 200 a 80 milhões de anos atrás, as inversões magnéticas eram mais frequentes (até dez vezes em cem milhões de anos). Após, elas desapareceram por quase 40 milhões de anos provavelmente devido à reorientação do manto e da crosta e ao reposicionamento dos polos geográficos e magnéticos em aproximadamente 30°. Este processo é conhecido como "true wander polar" ("verdadeiro passeio polar") e está associado a alterações na distribuição da densidade do manto e podem ter influência nas inversões dos polos magnéticos.

Portanto, há esperanças de que o núcleo da Terra não faça novas loucuras. Mas, se e quando os polos magnéticos se inverterem e tudo de ruim acontecer, ainda que não encontremos lugar para onde fugir, lembre-se de que teremos dois consolos:
  • a culpa não será nossa – poderemos culpar o Sol, a física ou a própria Terra – e
  • presenciaremos uma catástrofe totalmente democrática.
Referências:

Animais usam o campo magnético: theconversation.com

Anomalia do Atlântico Sul: huniversemagazine.com

Anomalia do Atlântico Sul: www.pnas.org

Apagão no Canadá: www.nasa.gov

Aves usam o campo magnético: socientifica.com.br

Campo magnético, convecção do manto e tectônica: www.sciencedaily.com

Campo magnético da Terra: hyperphysics.phy-astr.gsu.edu

Clima Espacial: hesperia.gsfc.nasa.gov

Distribuição de temperatura dentro da Terra: universemagazine.com

Efeitos do campo magnético da Terra: www.inverse.com

Estado do Campo Geomagnético: library.oarcloud.noaa.gov

Fluxos de lava e o geomagnetismo: news.wisc.edu


Interior da Terra: pubs.usgs.gov

Inversão dos polos magnéticos: theconversation.com

Inversão dos polos magnéticos da Terra: trustmyscience.com

Inversão dos polos magnéticos da Terra: www.inverse.com

Inversão dos polos magnéticos da Terra: www.space.com

Morfologia de estruturas do manto inferior sismicamente lentas: academic.oup.com

Norte Magnético ou um Sul Magnético: www.coolmagnetman.com

Placas tectônicas e reversões dos polos magnéticos: phys.org

Polo Magnético de 1840 a 2019: www.esa.int

Temperatura do núcleo da Terra: www.bbc.com



Leia também:

Sol e Terra: um relacionamento de vida e morte - Parte I e Parte II

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