4 de dezembro de 2018

Geomitologia: alguns outros mitos

Por Marco Gonzalez


O Monte Roraima, visto da estrada que leva à comunidade Pemón de Paraitepuy, na Venezuela (por Paolo Costa Baldi)

No campo da geomitologia, fenômenos geológicos podem contextualizar a metáfora poética e o imaginário mitológico. Neste sentido e dando continuidade a esta série, além do Monte Roraima, mais alguns casos são analisados: 
  • uma intrusão ígnea
  • uma elevação do nível dos oceanos e 
  • um continente perdido.
E outros casos são relatados brevemente: 
  • a interpretação de ossos fósseis, 
  • um forte terremoto,
  • uma cratera de impacto, 
  • um processo de desertificação e 
  • os rugidos de um vulcão.

O Monte Roraima

O Monte Roraima é um dos tepuis (mesas testemunho) da região ao norte de Roraima que se caracterizam por suas formas em topo plano. Seus 31 km² se distribuem na tríplice fronteira entre Venezuela, Guiana e Brasil e inspirou o livro "O mundo perdido" de Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes. Também o antropólogo alemão Koch-Grünberg coletou histórias dos índios da região e as publicou em seu livro "Do Roraima ao Orinoco". Este livro, por sua vez, inspirou a obra "Macunaíma" de Mario de Andrade, que não conheceu de perto a história do Makunaima original.

Diz uma lenda dos nativos Macuxi que em uma região plana com terras baixas e alagadas nasceu uma viçosa bananeira que cresceu muito e deu belos frutos dourados. Por serem frutos sagrados, os pajés proibiram que fossem tocados sob pena de desaparecer toda a caça, murchar todos os outros frutos da Terra e esta assumir uma forma diferente. Ao ser desobedecida a ordem, a natureza reagiu violentamente, uma grande tempestade foi marcada por trovões e relâmpagos e, do chão, elevou-se o Monte Roraima majestoso.

Em outra versão, apenas o guerreiro Makunaima podia colher e distribuir os frutos da "Árvore de Todos os Frutos", que dava bananas, abacaxis, tucumãs, açaís e todas as outras frutas da região. Como a ambição e a inveja tomaram conta de alguns corações, os frutos foram derrubados e os galhos foram quebrados para fazer nascer mais árvores iguais àquela. A "Árvore de Todos os Frutos" morreu e Makunaima, por castigo, transformou em pedra boa parte da floresta.

Ainda em outra versão, os ancestrais dos índios atuais passavam fome. Eles não conheciam Wazaká, a "Árvore da Vida" ou a "Árvore do Mundo", sempre carregada com todas as frutas deliciosas conhecidas. Apenas Akúli (a cutia) a conhecia e comia as frutas boas, distribuindo as que não prestavam. Makunaima acabou encontrando a Wazaká e, embora fosse aconselhado a comer apenas as frutas caídas, com raiva derrubou a árvore. O tronco da Wazaká se transformou no Monte Roraima e de sua seiva se formaram os rios da região.

Monte Roraima (por Tepui Expeditions)

Apenas 5% do Monte Roraima está localizado no Brasil. 10% ficam na Guiana e 85% na Venezuela, onde, para os indígenas Pemón, ele é a “mãe de todas as águas”. Realmente nascem dele importantes bacias hidrográficas, como as dos rios Arabopó, na Venezuela, Cotingo, no Brasil, e Paikora e Waruma, na Guiana. 

Pertencendo ao conjunto de planaltos areníticos tabulares da região, o Monte Roraima apresenta um relevo aplainado com recortes de ravinas que truncam a estrutura sub-horizontal sedimentar. A tectônica é predominantemente horst-graben.

As escarpas verticais do Monte Roraima têm mais de 500 m de altura. Suas rochas, com quase dois bilhões de anos, formaram-se em ambientes que variaram de mares rasos a dunas e rios. Elas pertencem à Formação Matauí, unidade de topo do Supergrupo Roraima, que registra fácies sedimentares areníticos a conglomeráticos

Há cerca de 23 milhões de anos, a paisagem da região amazônica era dominada por ambientes costeiros (as terras baixas e alagadas das lendas?), sendo que os rios corriam de leste para o oeste. Com o soerguimento da cordilheira dos Andes, foi interrompida a ligação do sistema fluvial com o oceano Pacífico e os rios passaram a correr para o leste. Foi quando nasceu o rio Amazonas, que se estabeleceu definitivamente há cerca de sete milhões de anos. Na realidade, o Monte Roraima não representa uma montanha que sofreu soerguimento, como as lendas sugerem. No contexto geológico descrito, ele e os demais tepuis são remanescentes de uma antiga cobertura sedimentar que sofreu erosão. 

A Torre do Diabo

Devils Tower (Torre do Diabo), no Wyoming, EUA, também conhecida como Mato Tipila ("Alojamento do Urso", no idioma lakota), foi um dos principais cenários do filme "Contatos Imediatos de Terceiro Grau" de Steven Spielberg.

Diz uma lenda dos nativos Lakota Sioux que seis meninas colhiam flores quando foram atacadas por ursos gigantes. Para protegê-las, o Grande Espírito levantou o chão sob os pés das meninas, construindo uma enorme torre. As feras tentaram escalar o monólito formado, mas só conseguiram arranhar suas paredes.

Uma lenda dos nativos Kiowa conta a mesma aventura com duas diferenças: as meninas eram sete e, ao final, elas foram transformadas na constelação das Plêiades.


Devil Tower (por Amael Rodrigues)

A Devil Tower mede cerca de 270 m de altura, tem 1.600 m de circunferência na base e uma área aproximada de 55 por 90 m no topo. É formada por uma intrusão ígnea constituída por um pórfiro fonolítico com grandes cristais de feldspato. A Devils Tower é cercada pela formação Sundance Jurassic no vale do rio Belle Fourche. 

Ela poderia ser: 
  • o remanescente erodido de um lacólito (há uma série de lacólitos próximos à sudoeste);
  • a chaminé de um vulcão extinto (cinzas vulcânicas, fluxos de lava ou detritos vulcânicos já teriam sido desgastados); ou
  • um corpo intrusivo de magma resfriado no subsolo e posteriormente exposto pela erosão.
Os "arranhões" dos ursos gigantes correspondem às junções colunares que se formam porque o magma derretido quente é menos denso e ocupa mais volume do que a rocha endurecida fria. À medida que a rocha esfria e se contrai, formam-se colunas hexagonais (e às vezes de 4, 5 e 7 lados) separadas por fissuras verticais. 

O Grande Dilúvio

O Grande Dilúvio tem motivado durante séculos explicações científicas, incluindo a identificação de evento e local específicos para contextualizá-lo.

A história do dilúvio de Noé estaria relacionada a uma antiga lenda da Mesopotâmia com o herói Gilgamesh que queria obter a vida eterna. Ele saiu à procura de um sobrevivente do Grande Dilúvio chamado Utnapishtim. Este lhe contou que fora advertido por Ea para construir uma arca e enchê-la com sementes e animais para salvá-los dos deuses. Estes, por algum motivo justo, pretendiam com um dilúvio destruir toda a humanidade. Assim, juntamento com sua família, Utnapishtim sobreviveu e ofereceu uma grande ceia aos deuses que, satisfeitos, deram-lhe a imortalidade.


O estreito de Bórforo, em Istambul, liga o mar Negro ao mar de Mármara, que se liga ao Egeu e este ao Mediterrâneo (por Google Maps)

Um evento que ocorreu há mais de cinco mil anos pode ter motivado a história do Grande Dilúvio. Nesta época, o mar Negro era um grande lago de água doce, 150 m abaixo do nível atual dos oceanos. Um derretimento glacial fez com que as águas dos oceanos entrassem através do vale de Bósforo, em Istambul, e inundassem a área do mar Negro com milhões de metros cúbicos de água. Elas subiram 70 cm por dia causando um caos para os povoados da região. O caos foi tão grande que justificou o surgimento do mito de uma inundação global.

Atlântida

Platão (427-347 aC), ao descrever Atlântida como um lugar situado além das Colunas de Hércules (ou seja, além do Estreito de Gibraltar), induziu que o "continente perdido" fosse procurado preferencialmente no oceano Atlântico. Entretanto, a sua busca em outras localizações nunca foi descartada.

Diz o mito de Platão que Atlântida era maior que a Líbia e a Ásia Menor juntas, tinha uma cultura avançada e era protegida pelo deus Poseidon. Porém, à medida que se tornava poderosa, sua ética declinava até que perdeu a proteção divina. Rapidamente, em um dia e uma noite, terremotos e inundações fizeram Atlântida afundar no oceano. 

Embora Platão vivesse longe de terremotos e tsunamis, ele descreveu corretamente tais fenômenos dando confiabilidade à sua narrativa. Assim, acrescida de camadas mitológicas, sua história foi incluída no folclore de diversas regiões, do Egito à Irlanda.


Interpretação artística de Atlântida de George Grie, de 2014 (por Wikimedia)

Como não há um local específico para o "continente perdido", em poucas regiões da Terra ele ainda não foi "encontrado". A lista inclui o Mediterrâneo, as Canárias, os Açores, o Caribe, a Tunísia, a África Ocidental, a Suécia, a Islândia e até a América do Sul. Eis alguns exemplos mais recentes:
  • Atlântida seria uma cidade real na foz do antigo rio Tritão, na Tunísia. Uma combinação de geografia física com a descrição de Platão, acrescida de registros históricos e imagens do Google garantiriam a localização.
  • Sítios arqueológicos no Parque Nacional de Doñana, na Espanha, pertenceriam a Atlântida. Registros históricos e dados de satélite, orientados pelos diálogos de Platão, indicaram a costa espanhola nas proximidades do Estreito de Gibraltar. Lá foram encontradas o que seriam as ruínas do Templo de Poseidon. 
  • Construções subterrâneas gigantescas de até 300 m de altura sob a Antártida fariam parte de Atlântida. 
Os duas primeiras descobertas não foram publicadas onde revisores especialistas pudessem examiná-las. A terceira pode, na realidade, apenas ser um conjunto de evidências de condutos e depósitos de água sob a camada de gelo da Antártida.

É possível que este mito esteja associado a uma erupção vulcânica ou a um terremoto da ilha de Creta ou da vizinha Thíra (atual Santorini). Tais eventos, por volta de 1500 aC, teriam dado fim à civilização minoica. Provavelmente vastas ondas de maré ou tsunamis se levantaram e fizeram desaparecer sob o mar diversas regiões (e até mesmo Atlântida).

Porém, o geólogo Seth Stein, da Universidade Northwestern, EUA, afirma que, se houvesse um continente perdido, ele já teria sido encontrado há muito tempo, pois o mapeamento oceânico atualmente é extremamente avançado. Parece mais sensato acreditar que Platão tenha criado apenas uma fábula para passar uma lição de moral ou explicar uma de suas teorias filosóficas.

Alguns breves relatos

Clique em cada uma das próximas imagens para vê-las ampliadas.

Interpretação de ossos fósseis


Lindwurm (por Bff)
Antigamente, na Grécia, acreditava-se muitas vezes que os fósseis de ossos de mamíferos, como mastodontes e mamutes de grande porte, teriam pertencido a ciclopes ou centauros ou ainda a alguns dos heróis gregos com grande estatura

Na China, principalmente no distrito de Pao Te Hsien, em Shansi, pensava-se que dentes e ossos fósseis de mamíferos eram restos de dragões. A associação entre fósseis e dragões pode ser constatada em diversas culturas. Lindwurm (foto ao lado) é uma escultura do século XVI exposta em Klagenfurt, na Áustria. Ela teve como modelo para a cabeça do dragão, o crânio que na verdade era de um rinoceronte da Idade do Gelo encontrado em uma pedreira local e que, hoje, está exposto no Museu de Klagenfurt.

A destruição de Sodoma e Gomorra


A destruição
(por Wikimedia)
De acordo com a história de Sodoma e Gomorra, estas duas cidades palestinas teriam sido destruídas em um caos de pedras e fogo. O quadro (ao lado) de John Martin, de 1852, representa este caos em óleo sobre tela.

As duas cidades estariam situadas em uma região tectonicamente instável em virtude da presença de falhas geológicas. Por volta de 2100 aC, um forte terremoto teria liberado energia suficiente, sob a forma de calor, fazendo com que gases de hidrocarbonetos e o próprio petróleo da região atingissem ponto de ignição.

Cratera de impacto


El Chaco
(por Scheihing Edgardo)
Diz uma lenda argentina que fragmentos da lua teriam caído na Terra, mais precisamente naquele país, acendendo um fogo que incinerou o mundo todo. Evidências sugerem que tal evento pode estar associado à queda do meteorito Campo del Cielo.

El Chaco (foto ao lado) é o maior fragmento, com 37 toneladas, do meteorito Campo del Cielo que caiu sobre a região de mesmo nome, na província El Chaco, na Argentinaentre 2080 e 1910 aC. Este fragmento atualmente está exposto no Parque Provincial de los Meteoritos naquela mesma província.


Desertificação na Mesopotâmia


Restos de templo em Eridu
(por David Stanley)
Na Mesopotâmia, um dos deuses mais importantes dos sumérios era Enki, deus da água. Um dia a deusa Inana, deusa do amor, seduziu Enki e obteve os "cem poderes divinos" que protegiam a cidade de Eridu. Com tais poderes, ela passou a proteger a cidade de Uruk. Enlil, o deus do vento, tomou o lugar de Enki fazendo Eridu entrar em decadência devido à desertificação. Enquanto isto, Uruk prosperou. 

Realmente, estudos recentes em depósitos lacustres, paleossolos e depósitos eólicos, das partes mais secas do deserto do Saara, mostraram uma sucessão de fases climáticas secas e úmidas coincidindo com a lenda. O paleoclima da Mesopotâmia segue um curso semelhante ao do Saara. Uma fase úmida durou de 7000 aC até 2500 aC, com lagos atingindo suas maiores extensões. Um período seco se iniciou daí em diante.

Os rugidos do Etna


Etna em 2002 (por NASA)
Em sua tragédia do século V aC, o dramaturgo grego Ésquilo contou que Zeus enterrou o dragão Typhoeus, que simbolizava o caos primitivo, sob o Monte Etna, na italiana Sicília. Seus rugidos e sua respiração ardente seriam uma analogia às erupções daquele vulcão.

O primeiro registro de uma erupção do Etna é do ano de 1500 aC. Acredita-se que ele tenha entrado em erupção aproximadamente mais 200 vezes desde então. A mais dramática delas, que durou quatro meses, aconteceu em 1669, de março a julho. Pode não ser um tempo demasiado para os rugidos de uma fera como Typhoeus, mas certamente é bem longo para a erupção de um vulcão.


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