9 de novembro de 2018

Geomitologia: A Hidra Cárstica

Por Marco Gonzalez


Ânfora de cerâmica (altura: 30,1 cm, largura: 20 cm) de 540/530 aC, com as figuras de Hércules e Jolau na luta contra a Hidra de Lerna (Coleção do Louvre)

O mito

Na mitologia grega, Juno (ou Hera), a rainha do Olimpo, ao descobrir a infidelidade de seu esposo Júpiter (ou Zeus), rei dos deuses gregos, exigiu que Hércules (ou Heracles), filho bastardo de Júpiter, fosse banido do Monte Olimpo. E ao saber que Hércules, para se tornar imortal, deveria completar doze tarefas impossíveis, Juno fez o que pode para aumentar a dificuldade dessas tarefas. Entre outras coisas, ela treinou uma Hidra para transformá-la em um monstro impossível de ser derrotado.

A Hidra de Lerna era uma enorme fera venenosa com várias cabeças. Era terrível enfrentá-la, pois sempre que uma cabeça era cortada, duas novas brotavam em seu lugar. Somente sua cabeça central não se duplicava ao ser cortada. Esta era imortal e deveria ser cortada e enterrada sob uma grande e pesada rocha. Só assim a Hidra seria dominada.

Esta besta repulsiva exibia uma respiração venenosa e, muitas vezes mesmo enquanto dormia, cuspia fogo. Com esta personalidade desagradável, destruía tudo ao redor, incluindo plantações, animais e pessoas.

Ela assombrava o pântano de Lerna, na Grécia antiga, e era maior e mais feroz que qualquer cobra, com quem tinha algum parentesco. Entretanto, quando não estava com fome ou de mau humor, a Hidra dormia descuidada e preguiçosamente em seu covil, uma caverna no pântano.

segundo trabalho de Hércules consistia justamente em derrotar a Hidra de Lerna.


Entalhe de Cornelis Cort, aproximadamente do ano 1565, com Hércules e Jolau na luta contra a Hidra (Achenbach Foundation)

Para vencer mais este desafio, Hércules atraiu a fera para fora de seu covil atirando-lhe flechas de fogo. Então, com a ajuda de seu sobrinho Jolau (ou Iolaus), ele usou a seguinte estratégia: cada cabeça da Hidra cortada por ele, em seguida, tinha o corte cauterizado por Jolau, evitando a indesejada duplicação.

Quando Juno viu que Hércules estava tendo sucesso, para distraí-lo, enviou crustáceos gigantes ao local. Hércules, mesmo assim, conseguiu alcançar a cabeça imortal da Hidra e desferiu um golpe preciso para cortá-la.

Hércules mergulhou suas flechas no sangue venenoso da Hidra, flechas que seriam destinadas a futuros inimigos, e enterrou a cabeça imortal sob uma enorme rocha completando, assim, seu segundo trabalho. 

Simbolismo

A expressão "bicho de sete cabeças" está associada à visão mítica da Hidra de Lerna, embora as diversas versões conhecidas deste mito não entrem em acordo quanto ao número de cabeças do monstro. De qualquer forma, esta expressão significa "excesso de dificuldade; algo que demanda muito esforço; coisa extremamente complicada ou de resolução quase impossível".

Interpretações filosóficas ou psicológicas de lendas e mitos não fazem parte do escopo dos textos deste blog, ainda que o simbolismo da luta com a Hidra de Lerna seja tratado intensamente por diversos autores. Eles, em geral, reconhecem este segundo trabalho de Hércules como um exemplo de perseverança na luta contra as dificuldades que temos que enfrentar na vida. Algumas dessas dificuldades, como a cabeça imortal da Hidra, não podem ser completamente eliminadas, porém, se dominadas adequadamente e mantidas sob controle, com elas (ou apesar delas) conseguimos seguir adiante.

O contexto geológico (e hidrológico)

Citações sobre a Hidra de Lerna são encontradas em registros muito antigos. Um exemplo é a obra Descrição da Grécia do geógrafo e viajante grego Pausânias, produzida entre os anos 160 e 176. Ele escreveu: "na fonte do Amymone, próximo a Lerna, em Argólida, cresce um plátano, abaixo do qual, dizem eles, a Hidra (a cobra d'água) cresceu". Outro exemplo é o poema épico romano Tebaida, de autoria de Públio Papínio Estácio, do século I, que conta que "o pântano de Lerna e o calor da Hidra aqueciam as profundezas dessas águas injustas".

Mas de onde vem a inspiração para os diversos detalhes que enriquecem a narrativa do segundo trabalho de Hércules? A história da Hidra de Lerna parece refletir a memória da drenagem antiga do pântano de Lerna, no lado ocidental do golfo Argólico, na região do Peloponeso da Grécia.


Mapa da Grécia com a provável localização do cenário mitológico (Lencer adaptado)

Este mito é um característico exemplo de narrativa com grandes coincidências relacionadas às condições hidrogeológicas de uma região. É oportuno lembrar que a hidromitologia (termo criado pela geóloga americana Cindy Clendenon), considerada um ramo da geomitologia, procura encontrar a relação essencial da mitologia com formações geológicas cársticas, que incluem cavernas, sumidouros, pântanos e riachos.

O cenário onde se desenrolou a luta entre Hércules e a Hidra constitui um tipo de paisagem que pode ser identificado como carste, uma "região ou terreno com feições características de processos de dissolução de rochas como o calcário, com drenagem subterrânea, cavernas e dolinas". 

As paisagens cársicas eram e continuam sendo comuns na Grécia.


Caverna de Diros, no Peloponeso grego, de origem cárstica (stefg74)

A Grécia antiga abrigou algumas regiões terríveis para se viver. Imagine-se como um simples pastor de ovelhas a cuidar do seu rebanho e, de repente, algum "monstro" avassalador surge do pântano fétido para por em risco sua vida e a de suas ovelhas. Em regiões cársticas, a água flui através de cavidades. Riachos podem aparecer e desaparecer, cavernas colapsam repentinamente e sumidouros se abrem de forma assustadora. A qualquer desavisado tudo pode parecer surpreendente e incomum. 

Claro que o monstro parecerá menor e menos assustador uma vez que se conheça o comportamento da água e das rochas em uma formação cárstica. Assim, quando uma cabeça da Hidra é cortada, digo, quando um fluxo d'água é bloqueado por quem não sabe o que está fazendo, seguramente surgem canais alternativos com provável descontrole da situação.

Neste sentido, a duplicação das cabeças cortadas da Hidra, a serpente d'água, pode ter tido inspiração na dificuldade de se interromper os fluxos de um leque aluvial, onde cada fluxo bloqueado faz com que o sedimento ceda e outros fluxos o substituam. Também não é ilógico supor que a cabeça imortal pode ser uma analogia relacionada ao conceito de nascente em um sistema hidrológico. Controlar a nascente, com grande dificuldade naqueles tempos antigos, correspondia a ter o domínio de todo o sistema, muito útil inclusive para viabilizar a irrigação da terra.


A planície de origem cárstica, no nordeste do Peloponeso, na Grécia, com campo de feno inundado (ulrichstill)

Em terras baixas, um rio com grande volume de água pode se tornar um monstro assustador. Não é coincidência que o nome de Sarandapotamos, uma localidade medieval grega, significa "os quarenta rios", uma reminiscência da monstruosidade hidrológica a ser subjugada. Entrar em acordo com tal monstro era a condição básica para domesticar a paisagem grega da época. O controle dos riachos na planície de Tegean também é um exemplo representativo. E não se deve esquecer que vales enevoados eram, "naturalmente", ocupados por criaturas fantasmagóricas, como a Hidra de Lerna. O domínio dessas criaturas chegou ao fim quando felizmente os ancestrais "divinos" dos gregos as derrotaram.



Cenário fantasmagórico do lago Keryni, em Serres, na Grécia (Vlahos Vaggelis)

Criaturas fantasmagóricas à parte, não é um bicho de sete cabeças entender que a força da narrativa e do simbolismo deste mito justificam, paradoxalmente, o fato de a Hidra – uma criatura fictícia – ter sido, através do seu nome, homenageada nas ciências:
  • Na astronomia, Hidra é a maior constelação da esfera celeste, estendendo-se por mais de um quarto do céu. 
  • Na biologia, Hidra é um gênero de animais invertebrados de água doce da classe Hydrozoa (filo Cnidaria), com tentáculos. 


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